As Mulheres, a Morte e os Cães

AS MULHERES, A MORTE E OS CÃES:

O SOBRENATURAL NO CONTO “DIZEM QUE OS CÃES VÊEM COISAS” E NA SOCIEDADE A QUAL ELE CRITICA

Breno de Sousa Muniz Oliveira1

Francisco Vicente de Paula Júnior2

Resumo: “Dizem que os cães veem coisas” (1987) é um conto homônimo que tem como autor o celebre contista cearense Moreira Campos (1914-1994), um dos mais importantes escritores do gênero no Brasil. Esse ensaio tem por objetivo analisar e destacar o sobrenatural e suas características aflitivas dentro da obra, além da utilização da persona feminina como personificação da morte, destacando a maneira como essa atitude foi utilizada pelo autor para criticar a burguesia e a objetificação da mulher pela sociedade. Através de pesquisas no campo da linguística, da semiótica e dos estudos sobre religiões cristãs e pagãs, percebe-se a utilização da figura feminina atrelada à imagem da morte como uma maneira de suavizar o peso que ela tem sobre o indivíduo, consequentemente, atribuindo passividade à mulher, característica presente na arte desde as civilizações greco-romanas. Isso não é diferente dentro do conto em questão, pois Moreira Campos utiliza dessa tendência presente na Arte para criticá-la, além de criticar os indivíduos que a consomem e os que a produzem.

Palavras-chave: sobrenatural; fantástico; feminino; social.

Introdução

Dizem que os cães veem coisas (1987) é uma obra do gênero narrativo, classificada como um conto graças as suas características transcendentes ao cotidiano e pela sua estrutura narrativa curta, tendo por sua autoria o célebre contista cearense Moreira Campos (1914-1994), considerado um dos mais importantes escritores do gênero no Brasil.

A história é narrada por um narrador-onisciente, marcado por uma voz que detalha os ocorridos e acentua as impressões e sentimentos dos personagens, se passando num espaço físico reduzido, representado pela mansão onde ocorre a narrativa. Desde o início, ao fundo, ouve-se o latido insistente de cães.

Em síntese, a obra relata uma festa ocorrida em uma mansão, celebrada no intuito de comemorar o aniversário da proprietária. Diversas pessoas foram convidadas e, com isso, crianças brincam e correm ao redor da piscina, enquanto os adultos se ocupam na tarefa de socialização e no esbanjamento de seus corpos e posses.

De repente, chegada a hora da refeição, torna-se notável o ladrar inquietante dos cães e o silêncio que pairava no ambiente. Lenita percebe a ausência de Netinho, seu filho. A babá se descuidara conversando com outras na varanda, e o garoto é encontrado morto, afogado na piscina. Entretanto, a história é marcada de forma fantástica pela presença de uma entidade denominada apenas pelo pronome “Ela”, posto em maiúscula para personificar um ser misterioso e potencialmente divino. Sua presença traz repertório para diversas interpretações dessa análise, a qual visa pontuar as nuances linguísticas, semióticas, femininas e sociais presentes no conto.

Portanto, esse artigo tem por objetivo investigar e analisar a figura feminina apresentada na obra e compará-la a outras manifestações desse mesmo cunho, pois, historicamente, a mulher foi demonizada em diversos movimentos literários com inúmeros olhares e funções, o que requer uma reflexão acerca do assunto e uma contextualização íntima com a morte e com os elementos que a evocam (como a presença dos cães e dos relógios) durante a narrativa inteira.

Cultura e religião

A partir do título da obra, pode-se inferir de imediato uma particular informação que permanece com o leitor durante todo o texto, visto que o autor utiliza de um ditado popular baseado na ideia de que os animais são seres espirituais e que podem interagir com o além. Allan Kardec (1804-1869), influente autor francês e codificador do Espiritismo, através do Livro dos Médiuns (1861), diz:

É certo que os Espíritos podem tornar-se visíveis e tangíveis aos animais e, muitas vezes, o terror súbito que eles denotam, sem que lhe percebais a causa, é determinado pela visão de um ou de muitos Espíritos, mal-intencionados com relação aos indivíduos presentes, ou com relação aos donos dos animais. (KARDEC, 1861, p.255)

Em sua obra, Kardec (1804) expressa o valor espiritual que os animais carregam e sua importante relevância para a vida humana na terra, assim sendo entendível que, na visão kardecista, alguns dos comportamentos temerosos dos bichos são influenciados pela presença dessas entidades.

Além do espiritismo, diversas outras culturas atrelam essa particularidade mística aos animais. Segundo a jornalista mexicana Almudena Barrágan (2019), os povos mexicas, por exemplo, uma das mais antigas civilizações mexicanas, acreditavam que as almas humanas percorriam um caminho extenso até chegar ao mundo dos mortos. De acordo com ela, por conta das adversidades e tribulações, esse percurso não deveria ser feito sozinho, consequentemente necessitando da presença das almas dos cães como guias para uma travessia segura.

Assim, pode-se entender a pertinência desse conhecimento comum de que cães conseguem ter contato com espíritos, e Moreira Campos utiliza isso ao longo do texto como elemento modalizador, de modo que sua repetição seja determinante para reforçar a ideia de tensão e perigo presente desde o início da obra, juntamente com a misteriosa figura denominada “Ela”, já que os cães apresentam comportamentos inquietos e misteriosos com a sua chegada, o que atrela, portanto, caráter fantástico a sua essência.

A chegada e o seu simbolismo

A obra inicia com a chegada d’Ela:

Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiqüíssima, atual e eterna. (CAMPOS, 1987)

Nesse momento, Campos utiliza de uma figura de linguagem com o intuito de atribuir uma característica bastante singular para a personagem principal não apenas da narrativa, mas da própria existência humana. Ao utilizar do paradoxo, atribui a ela o aspecto da atemporalidade, fazendo-a presente desde a alvorada do universo, dando-a espaço no hoje e sua permanência para todo o sempre. Além disso, o escritor utiliza do processo de substantivação, ou seja, processo que consiste na troca da classe gramatical de uma palavra, pois, mesmo utilizando de um pronome pessoal feminino, o autor insiste na substantivação clássica utilizando uma letra maiúscula para denominá-la. Mas, afinal, o que se pode concluir com todas essas informações?

Segundo a Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2016), a letra maiúscula é atrelada a nomes em casos de seres antropomorfizados, ou seja, aqueles que possuem traços ou características humanas, como Hélio e Gaia, ambas figuras da mitologia grega. Portanto, percebe-se essa humanização quando o autor destaca as longas pernas da personagem e o uso do vestido, características substancialmente humanas, logo no início da narrativa. Através desse fato e de outros que serão debatidos a seguir, pode-se inferir, destarte, que Ela representa uma personificação da figura da morte.

A personificação da morte

A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. (CAMPOS, 1987)

No decorrer da narrativa, Ela ganha diversas outras nuances que sustentam sua personalidade mortífera. Uma delas, vale destacar, é o uso do relógio pela personagem, no intuito de cronometrar o tempo em um instante de sublime calmaria e silêncio. Devido a essa observação, é possível notar que esse curioso atrelamento entre a morte e o tempo se revela aferrado nos diversos tipos de arte, principalmente naqueles onde não se tem a intenção consciente de incutir a morte como protagonista.

O Pintor Salvador Dalí (1904-1931), no quadro “A Persistência da Memória” (1931), por exemplo, coloca em tela o escorrimento dos relógios como marca da fluidez do tempo e como ele leva o homem ao momento mais inadiável da sua vida: a morte. Além disso, atribui um caráter crônico, mas, simultaneamente, lento e custoso ao processo de morrer, logo, transformando o tempo em um inimigo em comum entre o indivíduo e o seu instinto de sobrevivência. Ademais, essas nuances podem ser percebidas na personagem de Campos graças à discrição e à serenidade inquietante na qual é marcada na obra, onde desperta, portanto, também na leitura do conto, a veemente sensação de que a morte está escondida nos relógios.

Ao entender a relação da morte e o tempo, a narrativa começa a apresentar camadas que não se revelariam apenas com uma leitura superficial do texto. No progredir da história, a principal refeição é servida durante a festa e, por consequência do descuido dos adultos presentes (que ganharão pauta de discussão logo a seguir), Netinho, filho de um dos convidados, é encontrado afogado na piscina. A partir dessas informações, pode-se deduzir, portanto, que Ela não cronometrara o tempo por mero recurso estético utilizado pelo autor, mas sim como instrumento cruel encarregado de contar o tempo de vida de todos nós ou que a criança levaria para afogar até a morte, pois, segundo o psicanalista Rubem Alves, em seu livro O Amor que Acende a Lua, “o tempo pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração. Ao coração falta a precisão dos cronômetros. Suas batidas dançam ao ritmo da vida – e da morte.” (ALVES, 2003, p. 157)

A figura feminina e a morte

Diante de toda essa discussão sobre a morte e sua sutil representação em “Dizem que os cães veem coisas”, pode-se discutir também, de forma mais aprofundada, a genial escolha de Moreira Campos ao nominar essa personagem, visto que poderia ter escolhido diversas outras denominações que atrelassem maior horror à entidade, ou nomes que desempenhassem um melhor papel catártico. Porém, preferiu reduzir essa rotulação a apenas um pronome pessoal feminino, instalando, à vista disso, uma camada misteriosa nessa indireta designação.

Árife Amaral Melo, doutorando em ciências sociais pela FFC, diz:

São inúmeras as representações das mulheres como avatares de aspectos da vida humana. Mesmo que seja de olhares piedosos a austeros, da sensualidade ao recato, existem alguns valores, principalmente no que se refere à morte, atribuídos quase que exclusivamente às mulheres: a maternidade, a piedade, a serenidade, o acolhimento, a saudade. Em suma, a religião e a arte, no cenário da representatividade do gênero feminino, ainda carregam em si reminiscências que atribuem à mulher um papel passivo. (MELO, 2018, p. 13)

Um grande exemplo dessa referenciarão feminina é vista na renomada obra O Velho e o Mar (1951)de Ernest Hemingway (1899-1961), onde se narra a aventura do velho Santiago, que percorre o mar em busca de um grandioso peixe-espada. No meio da narrativa, Santiago reflete sobre a crueldade do mar perante a graciosidade de outros seres, onde podemos destacar o seguinte trecho:

Sempre pensava no mar como la mar, que é o que o povo lhe chama em espanhol, quando o ama. [..] Alguns dos pescadores mais novos […], dizem el mar, que é masculino. Falavam dele como de um antagonista, um lugar, até um inimigo. Mas o velho sempre pensava no mar como feminino, como algo que entrega ou recusa favores supremos, e, se tresvariava ou fazia maldades era porque não podia deixar de as fazer. A lua influi no mar como as mulheres, pensava ele. (HEMINGWAY, 1951. O Velho e o Mar. p 17)

A partir desse trecho, pode-se inferir que a figura feminina – dentro de diversas culturas e, portanto, de diversas manifestações literárias – traz consigo não apenas um viés de suavização do sofrimento masculino como predisse o romantismo de Álvares de Azevedo ou mesmo de Allan Poe. Sua presença e suas nuances reverberam em todo os parâmetros daquilo que é atrelada, diminuindo, dessa forma, a magnitude de certos enfrentamentos e a justificação de determinadas punições, pois há algo de cruel, mas também de irônico e fascinante na morte.

Por conseguinte, a morte metaforizada em mulher é artifício do sublime, de dor ou de abrandamento, em muitos textos, embora do ponto de vista da crítica feminista, como assevera Paula Jr (2015) em sua tese O Fantástico Feminino nos contos de três escritoras brasileiras, a mulher tem sofrido, ao longo dos séculos, um processo de demonização que se testifica na literatura fantástica escrita por homens.

Considerando essas colocações, percebe-se que Campos, ao personificar diretamente a morte, não só atribui uma camada mística à personagem como eleva o sentido crítico de seu texto com sua mórbida presença. Isso fica notório, visto que a protagonista recebe destaque apenas no início e no findar da obra, por consequência, dando espaço para outro horror que Moreira Campos faz questão de expor, pois, além de todas essas marcas sobrenaturais presente na obra, “Dizem que os cães veem coisas” carrega consigo um teor crítico neorrealista que investiga detalhadamente o social desde a flacidez da opulenta dona da casa até a postura ereta do garçom diante de um corpo de mulher que ele, em sua condição de serviçal, jamais poderá tocar.

Questões sociais

No desdobrar da narrativa, Campos a ambienta, como dito anteriormente, em uma mansão luxuosa onde pessoas de alto poder aquisitivo se reúnem para comemorar o aniversário da proprietária. A partir disso, o autor insere diálogos que denunciam a luxúria e as lascívias presentes nesses indivíduos, por conseguinte, critica ferreamente seus desmazelos e negligências que esses cultuam diante de outros indivíduos, sendo eles, às vezes, do seu próprio vínculo social.

Em uma das cenas onde se encontram uma senhora e um garçom, é possível notar claramente essas críticas. Campos inicia o diálogo se remetendo à senhora como “Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo” (CAMPOS, 1987), na qual pode-se deduzir que essa ligação entre ela e o item se dá pela forma como a figura feminina é corriqueiramente reduzida a um simples objeto que determina suas relações com outros indivíduos, pois é a segunda coisa na qual o garçom nota na senhora, sendo a primeira, portanto, seus “seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis” (CAMPOS, 1987), de modo que se pode entender que o corpo feminino, numa visão machista, pode ser tão útil e descartável como um usual par de óculos de sol, e Moreira Campos escracha criticamente essa prática elitista de forma crua, objetiva e impactante.

Esse fenômeno é explicado no fetichismo apresentado pelo filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), conceito cunhado em seu livro O Capital (1867), onde este diz:

“Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. […] os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos.” (MARX, 1867, p. 81).

Em outras palavras, os indivíduos mantêm o foco no plano material e atribuem a ele um valor ilusório que perpetua uma diferença de classes, sobretudo, a objetificação das pessoas e principalmente das mulheres, que, em uma sociedade machista, passam a ter valor apenas quando essas beiram a perfeição de um produto cuidadosamente acabado.

Essa crítica se efetiva no diálogo seguinte, onde a filha solicita rudemente uma lata de refrigerante à mãe, (uma coca-cola, símbolo capitalista), que a responde de uma forma ainda mais rude, por estar ocupada em flerte com um atleta presente na festa. Aqui é possível destacar não apenas o eros em oposição a tanatos, mas a carnalidade como fator determinante e animalesco (que caracteriza quase todos os personagens da narração), mas também a reprodução dos comportamentos da mãe para a filha e como esses hábitos são perpetuados verticalmente através da projeção dessas atitudes.

Destarte, assim como a educação de uma criança, onde os pais repassam suas ideologias para os filhos e não aceitam contestações desses, as classes mais privilegiadas atuarão de forma que sua ideologia, no caso do texto a burguesa, seja parâmetro para toda a sociedade, perpetuando, dessa maneira, sua integridade e hierarquicamente sua influência social.

Considerações Finais

Portanto, pode-se concluir com essa análise que “Dizem que os cães veem coisas” é, em suma, um aviso de morte, um deleite de uma premonição frenética dos valores sociais impostos nas classes e às mulheres, pois não há necessariamente um problema em trazer a morte através de uma figura feminina, mas há quando essas características que as mulheres detém são vistas como defeitos ou nuances inferiores, destacando apenas suas posses e seus valores estéticos, logo, perpetuando um discurso machista que o autor de certa forma nos expõe.

Por fim, depreende-se que o horror ou mesmo o fantástico na obra é marcado não só pelas figuras místicas e pelos acontecimentos que causam desconforto, mas é marcado também pela podridão presente nas altas classes e como elas, mesmo que convencidas de que suas posses e hábitos a diferenciem de outras pessoas, são igualadas a qualquer outro indivíduo quando a morte rouba seu último suspiro. Nessa hora, o ser humano é um só, sem diferenças entre ricos e pobres, e de uma forma que apenas seres dotados de pureza e sensibilidade, como os cachorros, estão aptos a perceber… porque dizem que os cães veem coisas…

Referências

CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães veem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.

KARDEC, Allan, 1804–1869. O livro dos médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental. [tradução de Guillon Ribeiro a partir da 49ª edição francesa de 1861]. – 81. ed.

MELO, Árife A. A Morte e as Mulheres: Representação Mortuária do Feminino. Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade[S. l.], v. 4, n. 1, p. 11–24, 2018.

MARX, K. O Capital – Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013

PAULA JR. F. V. O Fantástico Feminino nos contos de três escritoras brasileiras. London. NEA, 2015. 224p.

BARRAGÁN, Almudena. Xolos, os companheiros e melhores amigos no mundo dos mortos. El País. 01/11/2019. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/31/internacional/1572553002_607445.html#?prm=copy_link

ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. 8.ed. Campinas: Papirus, 2003. 214 p.

1 OLIVEIRA, Breno de Sousa Muniz. Acadêmico do 4º período de Letras com habilitação em Língua Portuguesa. UVA – Universidade Estadual Vale do Acaraú. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3128384328682763. E-mail: brenomuniz0703@gmail.com

2 JÚNIOR, Francisco Vicente de Paula. Doutor em Letras (Literatura e Cultura) pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8091592816411111 E-mail: vicenthy@yahoo.com.br