Resumo
Em termos simbólicos as “mulheres fatais” ou “demoníacas” sempre estiveram presentes na imaginação humana e, portanto, na imaginação criadora de todos os artistas. Desde o início da literatura, (oral ou escrita) as mulheres passaram a ser associadas ao Diabo. Isso posto, justifica-se esta análise pelo fato de investigar por qual motivo essa postura de demonização foi mantida e, mais detidamente, como isso acontece no texto. Para tanto, lançaremos mão de uma das teorias mais recentes no campo da análise literária, a Teoria da Residualidade, do estudioso Roberto Pontes, pois, por meio dessa abordagem é possível compreender minimamente a presença do diabo na literatura, imantado em uma figura feminina, como um traço remanescente ou residual que tem atravessado as literaturas de língua portuguesa desde o medievo. Escolhemos como corpus a obra “A Dama pé-de-cabra”, do escritor português Alexandre Herculano, texto em que se observa, mesmo comparando com outras literaturas, nitidamente essa atitude de demonização. A teoria da Residualidade literária, de Pontes (2015), então, confirma essa postura do autor como geradora de um tema ou motivo literário que remanesceu, migrou de uma época a outra, como prática para a escrita de textos sobrenaturais ou fantásticos.
Considerações iniciais
No começo dos tempos o mundo não era científico, o mundo era mágico. E aquele mundo de magia de que tratamos tinha como essência a própria natureza, não as noções dicotômicas e maniqueístas de Bem e Mal. A magia estava no sol, nas águas, nas flores, no voo dos pássaros, na mão, nos olhos e na alma. Mas para entender tudo isso, não bastava ter percepção, tinha que ter muita sensibilidade e entender de dor.
Assim, entre um homem e uma mulher, não é difícil vislumbrar que menstruar e parir faziam da mulher um ser imediatamente diferenciado. Logo, se menstruar e parir igualavam uma mulher às outras, então, parir gêmeos, algo sobrenatural, diferenciava as mulheres entre si, e a dádiva da maternidade tornava-se um mito de força e vitalidade que fariam da magia a pedra de toque das sociedades matriarcais. O poder era feminino.
Primeiramente, as famílias se enfrentaram, depois as tribos, depois os clãs. Nos livros de antropologia e história, havia lutas às vezes por uma fonte de água potável e até por legumes. Ao vencedor, as batatas! Àquelas guerras, de longas caminhadas, todos iam, homens e mulheres, principalmente porque lá, nos intervalos da batalha, o sexo tinha o sentido de relaxamento.
Ato contínuo a mulher engravidava, e defender suas crias virava também um dever. As crianças morriam nessas caminhadas. Era preciso protegê-las. Mas a luta por poder não brinca, não cessa… e, em algum momento, a mulher não foi mais à guerra, a maternidade, aos poucos, era transformada em fraqueza. A mulher virou a dona da casa. E surgiu a domesticidade, o ser convertia-se em estar. Ficar circunscrita ao lar não era uma falha, mas uma condição.
O erro, talvez, deu-se na aceitação das sedas, dos óleos, dos espelhos, dos espólios de guerra e acomodar-se na posição de rainha do lar. A mulher foi para as sombras e descansou junto ao borralho. O poder agora era bélico e masculino.
* Professor adjunto da UVA. Neste momento, faz estágio Pós-doutoral na UFC.
Depois disso, o homem lutou contra homens, o homem lutou por ele mesmo, o homem lutou por Deus e contra deus. E quando as mulheres tentaram sair das sombras, recorrendo novamente ao mundo mágico, por um pouco desse poder, arderam na fogueira de lenha e vaidade feita por nós (homens do medievo) porque segundo eles (os padres) eram elas o mal em pessoa. Mais uma estratégia da luta desigual pelo poder.
Posto dessa forma, mesmo à luz de anacronismos já tão conhecidos, não é tardio lembrar que, desde o começo dos tempos, entre os sexos, houve sempre uma luta por poder. Sim, por privilégios triviais como acender uma pira, conduzir um grupamento, entrar em determinado recinto, votar ou mesmo sentar-se em um trono. Confirmava-se a criação de (sub)mundo para o sexo feminino excluído e marginal. E assim foi até os dias de hoje, quebrando o silêncio, numa luta constante, uma caminhada incessante da margem para o centro, com todo tipo de empecilho a barrar-lhes a progressão.
Desenvolvimento
Avultam, sabidamente, na literatura de língua portuguesa de todos os séculos, do medievo ao decadentismo, do modernismo à atualidade as mais variadas representações do demônio, umas vezes em forma de bode, outras de animal horrendo com garras ou no semblante de alguma besta mitológica como requerem os temas do Sobrenatural. Mas aqui, por enquanto, interessa-nos, sobremaneira, quando o diabo é representado por alguém do sexo feminino.
As inúmeras representações da mulher como monstro, como bruxa, ou mesmo como um ser humano mau ou cruel, na literatura, seja ela pagã ou cristã, na verdade é um clichê. À luz de Duby (1992) chamaremos de mentalidade. Estas representações, em Paiva (1991), já eram comuns na Odisseia, por exemplo, no episódio em que as sereias tentam devorar os argonautas; na figura de Circe, que transformava em animais os homens que seduzia; em Lilith e sua simbiose com uma serpente maligna; na Bíblia, na pessoa de Eva que conduz o esposo ao castigo divino, de Cleópatra culpada pela derrocada egípcia ou mesmo de Jezabel, incutindo o mal nas ações do rei Acabe contra os cristãos, dentre tantos outros exemplos de mulheres ditas demoníacas.
É possivel afirmar até que, em determinados estilos de época, como o gótico e o romantismo, não houvesse a presença dessas mulheres talvez não houvesse muito o que dizer. Desde A princesa Brambilla, de Hoffman, do Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco a Lucíola de José de Alencar, é possivel observar, em terras portuguesas e brasileiras, onde foi muito divulgada a figura de um tipo especifico mulher: a mulher a demônio, mundana e destruidora da vida de qualquer homem que se lhe atravessar pelo caminho, principalmente, segundo Todorov(2004) em textos ligados ao Fantástico. Passemos agora ao entendimento dessa estranha e secular mentalidade.
Literariamente, há uma tradição masculina na literatura de teor sobrenatural. Com raras exceções como Mary Shelley, na Inglaterra, ou mesmo Emília Freitas, no Brasil, como aponta Paula Júnior(2011), este tipo de literatura, quando escrita por homens, apresenta a mulher com um aspecto negativo, normalmente com feição demoníaca”, que pode ser encontrada em várias obras da literatura de língua portuguesa.
A mulher, portanto, é posta realmente como inimigo do homem, literariamente o “outro”, a oposição que, ao mesmo tempo, encanta, enfeitiça, assusta, amaldiçoa e mata, como por exemplo no romance “A Dama pé-de-cabra”, do escritor português Alexandre Herculano, uma releitura de um texto passado no século XII em que um nobre encontra uma misteriosa mulher no meio de uma floresta e com ela se casa, mas passa a sofrer com uma terrível maldição que está muito além do amor idealizado no século XIX.
Cremos que não é por acaso que em textos como Le diable amoureux, de Jacques Cazzote(1772), primeiro texto da Literatura Fantástica, ou mesmo em Manuscrito encontrado em Saragoza, O homem da areia, A Vênus de Ille, os mesmos textos que também serviram de exemplo para Todorov, o sistematizador do Fantástico, envolviam a mulher, uma mulher malévola, um ser sobrenatural, um tipo de maldição ou algo muito ruim que entra na vida de um homem para literalmente acabar com ele.
Na literatura de língua portuguesa, especificamente Portugal e Brasil, em obras como “A dama pé de cabra”, a mulher figura como algo ruim, como um ser ambíguo e maléfico, com quem um homem bom e cristão não deveria se relacionar, tornou-se algo cultural, ou seja, um tipo de mentalidade que reverbera estilisticamente na literatura. Afirmamos, com isso, que a mulher sofreu historicamente um processo de demonização e que a Literatura escrita por homens tem sido a divulgadora dessa prerrogativa extremamente maléfica para a condição feminina ao longo dos tempos.
Desde a publicação do texto Malleus Malleficarum, no século XV, observa-se a bruxaria como algo essencialmente feminino, ligado inclusive às falhas comuns a este sexo (curiosidade, sensualidade etc) com valores apontados na tradição clássica (Pandora, Gorgone etc) e reforçados posteriormente pelo cristianismo e seus teóricos como Santo Agostinho, Tomaz de Aquino e Johannes Nidier autor de um outro manual Formicarius bastante lido à época a mulher é serva do demônio.
Isso posto, erigiu-se, com o louvor e a chancela dos críticos, uma literatura de base cristã, portanto, feita e divulgada por importantes formadores de opinião, que impuseram ao segundo sexo pechas deploráveis e estigmas ferrenhos que contribuíram até os dias de hoje de maneira extremamente depreciativa para a formação de uma imagem negativa da mulher ao longo dos tempos.
O Malleus Maleficarum, obra máxima produzida pela mania persecutória da Inquisição, publicado em 1486, apresenta a imagem da feiticeira que se entrega ao Demônio para perverter a humanidade como um reflexo das mulheres de seu tempo, vistas em uma torpeza moral irrefreável. (…) O tratado escrito pelos dominicanos Kramer e Sprenger, utilizado em quase toda a Europa ocidental e em diferentes momentos da perseguição às feiticeiras, estabelece uma ligação direta entre a heresia e a feitiçaria, e esta com a agente favorita do Diabo, impondo-se como autoridade inconteste durante o período de emulação da bruxa.
Discutindo, então, essa secular mentalidade é que achamos que a “teoria da residualidade”, a partir de Pontes (2011) tomada aqui como uma importante ferramenta para abordagem do fenômeno literário pode explicar as razões dessa representação demoníaca da mulher.
(…) toda vez que um senhor de Biscaia estivesse em Vustúrio, todas as entranhas das vacas mortas deveriam ser colocadas fora da cidade, sobre um rochedo. Após a sexta geração da família, a ordem foi desobedecida e a Dama – agora metamorfoseada em serpente para engolir sua refeição – traveste-se então em um escudeiro para deitar com as mulheres da cidade e sugar-lhes o sangue. (MACHADO, 2011, pp. 3-4)
Esta é, portanto, uma abordagem residual da obra literária de cunho sobrenatural, sobretudo para uma epistemologia da mulher na literatura a partir da LF, ou seja, do texto Sobrenatural, o que nos permite mais do que simplesmente constatar semelhanças entre tempos, autores e obras, mas, acima de tudo, demarcar a condição da mulher na literatura de cunho sobrenatural, pois esta imagem demoníaca persiste, socialmente, dentro e fora do sistema literário.
Um estudo residual sobre a mulher nesse tipo de texto, em especial, também possibilita repensar, para além do texto literário, questões importantes sobre a LF, tão carente de teorias na contemporaneidade, especificidades sobre a mulher, actante ou coadjuvante nesse tipo de texto, bem como as nuanças de uma prosa em que a mulher é apresentada como objeto de uma literatura que cristalizou a imagem de uma mulher extremamente negativa que precisa ser explicada por conta das implicações sociológicas que esta comparação acabou trazendo ao longo de todos esses séculos.
Em que pesem as considerações dos muitos críticos que já se debruçaram sobre a obra de Herculano, em particular sobre o texto “A Dama pé de cabra”, intrigou-nos a conduta de reproduzir esta imagem negativa do sexo feminino em um momento em que a mulher era idealizada, fetichizada e até valorizada numa atitude inclusive filosófica dado o platonismo das relações trabalhadas dos romances folhetinescos.
Isso posto, lançamos mão da Residualidade, para compreender também o diabo como um traço remanescente ou residual que tem atravessado as literaturas de língua portuguesa desde o medievo. Interessa também saber ou investigar por qual motivo essa postura de demonização foi mantida e, mais detidamente, como isso acontece no texto. Partindo deste princípio é que concordamos com Praz (2011) ao dizer que as mulheres “demoníacas” sempre estiveram presentes na imaginação humana.
Indiquemos apenas o frívolo precedente – que, porém, encontramos entre os românticos franceses – Le diable amoreaux, de Cazotte (1772), onde Biondetta, em vestes de pagem (Biondetto), procura conquistar Don Alvare, e com a resistência vencida ao final, revela a ele ser o diabo e o abandona atormentado por visões grotescas. Tomemos os movimentos da maga do Monk, de Lewis, Matilda. Lewis negou ter lido Le diable amoreaux, mas a coincidência de certos trechos provaria o contrário. Disfarçado de noviço, Matilda – que no final do romance parece não ser nada mais do que um instrumento de Satanás, mas que por quase todo o curso da obra se apresenta ao leitor através da humanidade de sua paixão – consegue entrar no convento de Ambrosio e confessar seu amor pelo monge que, até então, tinha fama de santo. Repelida, descobre o esplêndido seio e simula tirar um punhal. Lewis não tinha a mão adestrada à evocação da beleza feminina e a passagem da tentação não é sem estúpida ingenuidade.
Logo, as imagens de Lilith, Eva, Circe, Gorgone ou Biondetta revelam um processo estilístico de demonização da mulher na Literatura que corresponde, histórica e socialmente, a um processo de dominação do sexo masculino que necessitaria oprimir e rebaixar o segundo sexo, no dizer de Beauvoir(1980). Logo, apresentar a mulher com ligações ou semelhanças com o diabo parece-nos muito mais uma estratégia que um aparato estético.
Encontramos, então, em “A Dama pé-de-cabra”, de Alexandre Herculano, um projeto narrativo que revisitando a história primeva do século XII, apresenta uma mulher com pés forcados, uma dama com pés de cabra, numa alusão imediata ao diabo ou representações dele. Há imediatamente uma ruptura com o modelo romântico de idealização feminina – no entanto, uma ruptura que nos conduz ao Fantástico, aos textos de cunho sobrenatural.
O nobre D. Diogo Lopes vê pela primeira vez essa linda jovem sentada em uma pedra cantando. O amor é imediato. A moça gosta de música e sobretudo de cantar, e isso já lhe confere um tônus fantástico, pois no medievo eram comuns as histórias de encantamento, sendo o sema da palavra “cantar” a própria ideia de feitiço, ou seja, um dom que certas mulheres possuíam (as maléficas) para atrair os homens e matá-los.
O nobre cavaleiro pede a jovem em casamento, ela aceita, mas lhe impõe uma condição: ele jamais poderia se persignar outra vez, ou seja, ele não poderia mais benzer-se, fazer o sinal da cruz. Apaixonado ele apenas cogita: “de que servem as benzeduras?”. Destacamos então o contraste entre o amor romântico incondicional e puro e o amor que a Dama dos pés forcados oferece a Diogo, um tipo de pacto, um acordo; mas algo muito estranho ou cheio de ligações com o Mal. A narrativa de Herculano foi publicada no século XIX, mas ambienta-se na Idade Média, um momento dominado pelo Teocentrismo, mas que ainda ressoa no seio da sociedade por meio da convenção burguesa do casamento.
A Dama pé-de-cabra é uma figura que pertence quase que exclusivamente a Portugal, embora na fronteira com a Espanha se possam encontrar lendas “orais” que falam de uma senhora fisicamente parecida com a referida personagem, cuja característica principal é possuir os “pés forcados como os de uma cabra”. No dizer de Flusser(2008), um diabo feminino não deixa de ser um diabo
Segundo alguns críticos, a dama medieval do “Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro”, e nisso temos um caráter histórico importante, está próxima das fadas melusianas, um nome que deriva de Melusina, a mais famosa das figuras femininas medievais, e que costumava oferecer ao marido uma importante descendência. No entanto, sua aparência se vincula muito mais a um súcubo, um demônio feminino, que uma fada.
Alexandre Herculano retoma esse passado histórico e o traz para uma narrativa que pode – e precisa – ser lida também num sentido religioso. Entretanto, o tipo de espaço aberto para a vinda dessas questões é o que nos interessa. Trata-se de um espaço romântico por excelência, no sentido de abrigar uma perspectiva crítica em relação aos preceitos religiosos. Essa perspectiva aparece diluída em toda a narrativa e, nesse momento, centramos nossa mirada na figura sombria da “Dama dos pés de cabra” que, a partir de sua origem medieval, favorece uma avaliação mais crítica do século XIX em Portugal.
“Demônio” (p.71), “Diabrete” (p. 72), “Coisa do Diabo” (p. 75), “Satanás” (p. 86), “Mal-aventurada” (p. 87), “Terrível” (p. 87) e tantos outros adjetivos desse mesmo campo semântico são atribuídos à Dama durante toda a narrativa – adjetivos que sinalizam um espaço discursivo católico por excelência. Logo, a tradição religiosa repudia a Dama, especialmente por ser representante de um passado pagão, e – ironicamente – é por meio do Abade que o leitor toma conhecimento da história dessa “mulher-demônio”, coisa do diabo: “Ora a história da formosa dama das serras, de verbo ad verbum, como estava na folha branca do santoral, rezava assim, segundo lembranças do abade.” (p. 75.)
Por meio da Residualidade, é possível compreender o diabo e suas variantes como um traço remanescente ou residual reforçado por uma mentalidade negativa quanto ao sexo feminino que tem perpassado arquetipicamente ou como um resíduo as literaturas de língua portuguesa desde o medievo. Cogitamos inclusive, graças à teoria de Pontes (2011) a presença de “monstros e temas residuais” na Literatura como o lobisomem, o navio fantasma, a menina perdida, a moça da estrada, a exemplo de tantos outros monstros já apontados por Borges(2007) em seu famoso bestiário.
A história da Dama pé de cabra, escrita no século XIX, por Herculano, liga-se a outra escrita cem anos antes na última folha de um santoral godo. Há, portanto, por meio de uma transtextualidade, a reconstituição de uma época em outra inclusive reproduzindo a mentalidade de ser a mulher íntima dos demônios do mundo cristão ou pagão dentro do contexto da guerra entre portugueses e árabes de onde vem toda uma tradição de literatura oral herdada pelos portugueses. É este, portanto, um detalhe que se precisa observar.
Assim, desde cedo, e “à míngua de uma Idade Média que nos faltou”, recebemos um repositório de composições mais do que representativo da oratura de extração geográfica e histórica cujas raízes estão postas na Europa ibérica do final da Idade Média, justamente quando ganhavam definição as línguas românicas, segundo Pontes (1999b, p. 1).
Atestamos, portanto, que ao longo dos séculos, motivada por contextos históricos desfavoráveis, medida pela literatura de autoria masculina, propositadamente, a imagem negativa da mulher foi construída e cristalizada em textos históricos como Malleaus Maleficarum e Fornicatus, mas foi por meio da literatura, graças a sua maior aceitação, textos como A dama pé de cabra, de Alexandre Herculano, colaboraram sobremaneira para a divulgação dessa imagem e efetivamente dessa perniciosa mentalidade.
III – Conclusão
A partir do texto de Alexandre Herculano, desenvolvemos reflexão, por meio da teoria da Residualidade, quanto ao processo constante de demonização do sexo feminino na Literatura, uma postura eminentemente artística(?), mas que reproduziu, por séculos, uma ideia negativa sobre a mulher que atravessa os tempos e, seguramente, tem sido muito prejudicial às difíceis relações de gênero dificultando, por estigmatização, a condição da mulher na sociedade.
Estes objetivos se completam na compreensão de como e por qual motivo a obra de autores como Alexandre Herculano, dentre outros, apresenta uma imagem negativa do sexo feminino confirmando que a teoria da residualidade, de Roberto Pontes serviu para compreender esta postura de alguns autores de Portugal e do Brasil, um grande obstáculo para a condição feminina na sociedade.
Indubitavelmente, dentre tantos obstáculos, o maior deles foi a imagem negativa da mulher criada pelo homem, divulgada pela religião e reforçada pela literatura produzida durante o Romantismo, no século XIX, no Brasil e em Portugal. Então, da Condessa de Biscaia a Lídia Jorge, de Lilith a Clarice Lispector, que entendia tudo de bruxaria, essa mentalidade de que a mulher é o mal, de que tem estreita ligação com o Diabo, como se observa em A dama pé de cabra, de Herculano, precisa ainda ser descontruída, pelo menos no campo das artes, embora o social já estivesse profundamente prejudicado.
Refletir sobre a literatura, feita por homens, como problema e ao mesmo tempo solução (quando escrita por mulheres) é parte dos nossos objetivos, mas compreender o que houve e lançar mão dos apetrechos capazes de mudar esta perspectiva ou, ao menos, compreendê-la para que novas injustiças não voltem a ser cometidas é algo que cientificamente desejamos, embora ainda acreditemos na boa magia que existe desde o início dos tempos e que, enquanto houver mulher, nunca deixará de existir.
Referências
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