Residualidade nos prefácios de autoria feminina

Resumo

O presente artigo tem por imediata finalidade evidenciar a forma inteligente e, portanto, estratégica como as escritoras do século XIX utilizaram seus prefácios (des)interessados para adentrarem, aos poucos, no restrito, hegemônico e machista ambiente literário de sua época. Em segunda instância, nosso trabalho também reflete como a Teoria da Residualidade pode servir de aporte teórico para a compreensão dessa forma específica de apresentação das autoras e de seus textos a partir de estruturas que permanecem ou remanescem em literatura configurando, residualmente, uma estratégia estilística contra a falta de paridade entre os gêneros no mercado editorial oitocentista.

Palavras-chave: Prefácios. Autoria feminina. Residualidade.

Considerações iniciais

Ao que se percebe, principalmente no campo da Arte, nas palavras de Susana Funck (2001), a mulher sempre esteve “negociando” espaços, por exemplo, na Literatura, entre “significados herdados e posicionamentos alternativos, mas sempre em relação ao que está culturalmente disponível”, ou seja, trilhando um caminho, andando veredas estreitas e encobertas para um dia descansar ao sol em seu jardim selvagem.

Desde sua entrada nas rodas de conversa, nos meios literários, a mulher precisou criar estratégias para esta inserção historicamente não autorizada. A criação de jornais e revistas para o público feminino(inicialmente), a adoção de pseudônimos e até mesmo permitir que o marido publicasse textos e adentrasse academias em seu lugar, foram maneiras de acessar o estranho e fechado mundo literário. Dentre todas essas formas a que nos chamou mais atenção foram os prefácios, das obras de autoria feminina, principalmente nos livros do século XIX.

Os chamados paratextos editoriais teorizados por Gérard Genette (2009) sempre foram uma espécie de vestíbulo para o texto e seu autor. No entanto, quando se tratava de um texto de autoria feminina era preciso um pouco mais que escrever e ter amigos para comprar. Era preciso, primeiramente, entrar no ambiente editorial para depois passar a ser costumeiramente lida e receber os aplausos do público ou mesmo as suas críticas.

A inferiorização da mulher, sua pretensa subalternidade, inclusive na literatura, era percebida também na hora de publicar um livro. Considerando a mentalidade da época (de inferiorização do sexo feminino), comum aos séculos XVIII e XIX, o mundo editorial era também um lugar muito hostil, talvez mais que o comum, pois o embate não envolvia apenas papel ou dinheiro, mas orgulho, pedantismo, vaidade e gênero.

_____________

  1. Prof. Adjunto da Universidade Vale do Acaraú(UVA), membro do GERLIC, e atualmente em estágio Pós-doutoral em Literatura na UFC.

Nessa perspectiva, este estudo buscou investigar, utilizando a teoria da Residualidade, como os prefácios instantes no conjunto de obras de algumas escritoras brasileiras podem indicar os primeiros passos da autoria feminina em nossa literatura. Ao mesmo tempo, buscou-se verificar como esses mesmos paratextos foram utilizados, por mais de um século, para colocar em evidência junto ao leitor questões centrais da obra e da vida dessas escritoras em sua época e para além dela.

Desenvolvimento

No campo da Residualidade literária, no dizer de Pontes (2006) as mentalidades são inerentes. Assim, o que a Teoria da Residualidade estuda aqui é o que remanesce de imaginários e práticas anteriores, ou seja, como a maneira de sentir, pensar, agir e viver de um determinado grupo social (mulheres escritoras) de uma certa época pode estar refletida nas demandas deste mesmo grupo social de um período posterior.

Um dos primeiros prefácios a nos causar interesse foi o de Teresa Margarida da Silva Orta (escritora luso-brasileira) em As aventuras de Diófanes (1752). Muitos outros vieram depois dele, e os principais serão dispostos aqui, à moda de excertos, seguidos de breve e elucidativo comentário.

Excerto 1

Leitor prudente, bem sei que dirás ser o melhor método não dar satisfações; mas tenho razão particular, que me obriga a dizer-te, que não culpes a confiança de que me revisto, para nele bastar que o natural instinto observe os preceitos da razão, para satisfazer ao ardente desejo, com que procuro infundir nos ânimos daqueles, por quem devo responder, o amor da honra, o horror da culpa, a inclinação às ciências, o perdoar a inimigos, a compaixão da pobreza, e a constância nos trabalhos, porque foi só este o fim, que me obrigou a desprezar as vozes, com que o receio me advertia a própria incapacidade; e como em toda a matéria pertence aos sábios advertir imperfeições, quando reparares em erros, que desfigurem esta obra, lembre-te que é de mulher. Que nas tristes sombras da importância suspira por advertir a algumas a gravidade de Estratónica, a constância de Zenóbia, a castidade de Hipona, a fidelidade de Polixena, e a ciência de Cornélia. Também é certo, que para pintar Majestades me faltam os pincéis de Apeles, e não tenho a pena de Homero; mas como sou estrangeira, tenho visto bastante para poder contemplar soberanas propriedades, assentando em que não há vapores tão elevados, que possam formar sombras na grandeza do Olimpo. Se esta empresa não produzir seu dono. Para ser sofrível o meu atrevimento, adverte que a morte me há de separar dos meus, e que (só assim) ainda depois de me haver reduzido a alheios desenganos, lhes ficarei advertindo o que lhes convém; e tenho tão disposto o ânimo para sofrer os inimigos desta obra, que já espero a crítica, assim como os valerosos, que têm por maior o trabalho de fugir, que o de esperar, pois me anima o sólido prazer, de que sobre as minhas ignorâncias se formem polidos edifícios com acertadas medidas para se praticarem científicas doutrinas.

ORTA. Maria T. Aventuras de Diófanes.(1752)

Teresa Orta, embora com dupla nacionalidade, é autora do primeiro romance brasileiro escrito por mulher, e em seu prefácio, registra a hostilidade do meio literário da época e, humildemente, diz-se incapaz da empreitada e roga para que o leitor “prudente” e justo perdoe-lhe algum erro que, porventura, encontrar justificando que acontecerá porque é um livro “escrito por mulher”. Ainda em uma postura de repreensão se diz menor que Apeles (no detalhe), menor que Homero (no gênio) e mostra-se animada apenas no sentido de supor que sua obra, embora marcada pela ”ignorância”, possa servir de base a doutrinas ou saberes futuros. Do ponto de vista da Residualidade, o que se vai observar, a partir de então, é que várias escritoras seguirão o mesmo estilo de prefácio, a mesma forma de apresentarem-se e de apresentar com humildade seu livro para conseguirem romper o interdito imposto às mulheres pelo mercado editorial.

Excerto 2

Não é um prólogo o que vou escrever: sempre embirrei com elles, e jamais me recordo de os haver Jido, por breves que fossem. Porém, dando publicidade a um de meus escriptos, vencendo, emfim, a extrema timidez de o fazer conhecido đo público, vou rogar a benevolência d’aquelles que me lerem como um discípulo que se quer instruir. Sem essa vaidade, tão mal cabida n’algumas de meu sexo que, compondo alguma cousa, julgam-se poetisas consummadas, eu tanto mais ganharia com o juizo sensato de pessoas de critério, quanto o desprezo com que olhassem para as minhas pobres linhas ser-me-hia prejudicial.

Assim, pois, é com a maior humildade que me apresento a vós, benévolo leitor, rogando-vos animeis com o VOSSO acolhimento a primeira producção de meu espírito. Se realisardes as minhas esperanças, fareis desenvolver o meu talento, que se aniquilará até a última scentelha com o vosso desapreço.

D. Narcisa de Villar foi escripta quando apenas tinha eu 16 annos: merece, portanto, que desculpeis a mediocridade da linguagem e a singeleza com que decorei as scenas.

A Delphina de Madame Stael não é sem defeitos, e entretanto ella foi recebida em Paris com estrondoso acolhimento, assim como à timida e ingênua Clara d’Alba por* simples que é de atavio, não deixou de ganhar da boa Madame Cotia, um nome illustre na república das letras.

Permitti-me contar, que fareis também com que um dia seja tão favoravelmente acolhido, por seus compatriotas, o humilde e grato nome com que subscreve os seus ainda mais humildes escriptos a

Indígena do Ypiranga.

CASTRO. Ana Luiza. D. Narcisa de Villar (1850).

O segundo prefácio é do romance D. Narcisa de Vilar, escrito por Ana Luiza Castro, sob o pseudônimo de Indígena do Ypiranga. Novamente a mesma postura de humildade em busca de acolhimento para seu nome e sua obra. Em poucas linhas, contando com a benevolência do leitor, aponta os prováveis erros de linguagem ou mesmo a simplicidade das cenas criadas. Lembra que toda mulher está sujeita a essas falhas e por isso cita madame de Stael rogando que o leitor brasileiro seja tão benevolente quanto os leitores franceses costumam ser. Ao apresentar-se como uma garoa de apenas 16 anos, idade que tinha quando escreveu o livro, credita à pouca idade e à falta de experiência os prováveis erros do livro e por isso pede humilde e insistentemente a benevolência do leitor.

Excerto 3

Mas ainda assim, não o abandoneis na sua humildade e obscuridade, senão morrerá à míngua, sentido e magoado, só afagado pelo carinho materno.

Elle simelha à donzella, que não é formosa; porque a natureza negou-lhe as graças feminis, e que por isso não pode encontrar uma affeição pura, que corresponda ao affecto da su’alma; mas que com o pranto de uma dor sincera e viva, que lhe vem dos seios da alma, onde arde em chamas a mais intensa e abrasadora paixão, e que embalde quer recolher para o coração, move ao interesse aquelle que a desdenhou e o obriga ao menos a olhá-la com bondade.

Deixae, pois, que a minha URSULA, tímida e acanhada, sem dotes da naturesa, nem enfeites e louçanias d’arte, caminhe entre vós. Não a desprezeis, antes amparae-a nos seus incertos e titubiantes passos para assim dar alento à authora de seus dias, que talvez que com essa protecção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir couza melhor, ou quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrucção mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós.

REIS. Maria F. Úrsula(1859).

O terceiro prefácio vem de Úrsula, livro da maranhense Maria Firmina dos Reis, que mais de cem anos depois do livro de Teresa Orta volta a rogar de maneira humilde e chã a proteção e o acolhimento do leitor, pois é este acolhimento que promoverá o incentivo também a outras escritoras. Utilizando um tipo de similitude entre o livro e a personagem feminina Úrsula, a autora recorre ao tema da maternidade (muito comum na autoria feminina) para pedir que sua “filha” Úrsula, que não é formosa, possa ao menos transitar com alento e proteção pela sociedade que leve outras mulheres a escreverem com mais engenho e zelo, coisa muito melhor. Observa-se, então, que havia surgido um tipo de prática ou mentalidade sobre a mulher escritora que voltaria a repetir-se em muitos outros textos de mulheres que escreveriam posteriormente.

Excerto 4

Ao Leitor,

Meu livro não tem padrinho, assim como não teve molde. Tem a feição que lhe é própria sem atavios emprestados do pedantismo charlatão. Não é, tampouco, o conjunto das impressões recebidas nos salões, nos jardins, nos teatros e nas ruas das grandes cidades; porque foi escrito na solidão absoluta das margens do Rio Negro, entre as paredes desguarnecidas de uma escola de subúrbio; é antes a cogitação íntima de um espírito observador e concentrado, que (dentro dos limites de sua ignorância) procurou numa coleção de fatos triviais estudar a alma da mulher, sempre sensível e muitas vezes fantasiosas.

Tenho a certeza de que alguns ou quase todos os que lerem este livro hão de achar sua protagonista demasiadamente extravagante. Mas, se considerarem nos génios, que são ver dadeiras aberrações da natureza seja o desvio para sumo bem ou sumo mal, verão que a Rainha do ignoto não é na realidade um gênio impossível, é simplesmente um gênio impossibilitado que, passando para o campo da ficção, encontrou os meios de realizar os caprichos de sua imaginação raríssima e da propensão bondosa de seu extraordinário coração.

O feito de Joana D’Arc é um fato que passou para o domínio da história. Mas não nos parece ele uma lenda? Hoje. com mais razão podemos nos apoderar do inverossímil; pois estamos na época do Espiritismo e das sugestões hipnóticas, nas quais fundamentei o meu romance.

Não me assusta a crítica sincera dos que, sem pretensões malévolas, pactadas pela justiça, me fizerem enxergar defeitos reais que minha ignorância, ou meu descuido, não pôde ver, mas, embora receie a rivalidade imprópria das almas grandes, do verdadeiro talento, não recuarei. De ouvidos cerrados, seguirei desassombrada no dificultoso caminho da Literatura Pátria.

FREITAS. Emília. A rainha do Ignoto (1899).

O quarto prefácio, dentre tantos outros, apresenta o romance de Emília Freitas, novamente sob o viés da residualidade, dessa postura cordata e delicada de sempre “pedir licença” para adentrar os espaços, como um tipo de “negociação”, que estrategicamente precisava ser feita pelas mulheres escritoras para entrarem nos fechados círculos literários do século XIX . Ainda valendo-se da “benevolência do leitor” este prefácio de Emília Freitas apresenta, no entanto, uma postura resoluta de alguém que não se calará, pois, nessa persistência feminina, tudo de que precisa na verdade é de uma oportunidade para mostrar seu talento.

Isso posto, há em comum entre os textos apresentados, e tantos outros que nos custa enumerar, uma série de procedimentos estratégicos de inserção que confirmam uma prática, advinda de uma mentalidade oitocentista pautada na subalternidade feminina, que se manifesta residualmente em recursos estilísticos como: 1) Tratar o texto como um filho(a); 2) Afirmar que “’é um livro de mulher”; 3) Usar adjetivos depreciativos sobre si e seus escritos;4) Dialogar com o leitor pedindo-lhe proteção ou leniência; 5) Afirmar-se humildemente como uma escritora que está aprendendo e, portanto, propensa a erros.

Considerações finais

Feitas as devidas considerações sobre os prefácios de autoria feminina no século XIX, os resultados apontam para uma estratégia de escrita residual, em forma de prefácio,buscando inserção no mercado editorial brasileiro notadamente dominado por homens, uma vez que a autoria feminina estava dando seus primeiros passos e precisava, como nos lembra Moreira(2002), “sair da margem” e “caminhar para o centro”.

Ratificando a mineira Conceição Evaristo “o ato de escrever” de uma mulher revela, sim, um “sentido político”, pois trata da afirmação da autoria feminina em uma sociedade, de ontem e de hoje, na qual os escritores homens ainda têm amplo controle no ambiente literário e, portanto, nas publicações. Esse ato político de escrever soma-se ao ato político de publicar, ao sabermos as oportunidades de publicação continuam poucas e muito exigentes, principalmente se for uma escritora negra, pobre e desconhecida, basta tomar como base a fala infeliz do acadêmico Ivan Cavalcanti Proença, ao dizer que o livro Quarto de despejo, da também mineira Carolina Maria de Jesus, não devia ser considerado literatura.

Sempre houve e ainda há no Brasil uma invisibilidade editorial, e é contra isso que se deve lutar. O início dessa luta foram, seguramente, os prefácios estratégicos de que falamos em nosso artigo que, diferentemente do que fizeram as grandes escritoras, não tem nada de desinteressado. O mesmo podemos dizer da importância da Residualidade e de todo o seu arcabouço teórico para uma abordagem mais segura do intrincado fenômeno literário, principalmente quando tratamos das singularidades da autoria feminina.

Referências

FUNCK, S. B. Descolonizando a Sexualidade Feminina: As Marionetes e as Vampiras de Angela Carter (2001). In: Comunicação: IX Seminário Nacional Mulher e Literatura – UFMG. Português – UFMG. Belo Horizonte, BRASIL. Impresso: Mesa-redonda “Feminismos e Pós-Colonialismos”.

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, 376 p.

MOREIRA, Nadilza Martins. Da margem para o centro: a autoria feminina e o discurso feminista do século XIX. In: DUARTE, Constância Lima; ASSIS. Eduardo de; BEZERRA, Kátia da Costa. (Org.). In: Coleção Mulher e Literatura. 809 ed. BELO HORIZONTE, MG: Gráfica Editora Tavares Ltda., 2002, p. 143-147. v.1.

PONTES, Roberto. Reflexões sobre a Residualidade. Entrevista concedida a Rubenita Alves Moreira. Comunicação na Jornada Literária “A Residualidade ao alcance de todos”. Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Julho de 2006.