Lendas Urbanas: o insólito nas ruas de Fortaleza

O Insólito nas ruas de Fortaleza:

O homem é um animal literário. Entenda-se por literário o gosto que temos por todo tipo de narrativa oral ou escrita capaz de deleitar, entreter, informar e, principalmente, emocionar o ser humano levando-o à purgação, ao êxtase poético, à catarse propriamente dita. Quando não está inventando histórias acaba participando de alguma delas. Seja como demiurgo, narrador ou simples personagem, o ser humano é o motivo maior de toda a literatura, pois o costume de contar histórias tem início nos tempos mais primitivos quando, ao redor do lume, um ser desgrenhado, de clava em punho, contava aos outros, com sons guturais, como havia capturado o animal que estavam comendo. Seguramente, aumentou um pouquinho mais na ação, exagerou um tanto assim na intriga e nos socos desferidos… resumindo: mentiu descaradamente.

Mas não podemos esquecer que toda mentira tem a sua graça. Se assim não fosse, o mundo inteiro seria mais sisudo e mais propício ao desespero, sem um toque de magia, sem um quê de mistério, sem o humor e o assombramento que nos são peculiares. A Literatura Oral, mentira muito bem contada, que não goza do respaldo de que é merecedora, é, na verdade, o primeiro pão do qual nos alimentamos largamente, o que faz com que as lendas urbanas sejam mais a literarização de um boato que uma simples fofoca.

As Lendas Urbanas são produto dessa prática remotíssima e imorredoura. Advindas da tradição oral, da vertente popular do sistema literário, sem o ranço academicista dos gêneros maiores ( a poesia, o conto e o romance) estas narrativas só existem, não são registradas por ninguém porque a ninguém pertencem. Surgem apenas e se espalham com uma rapidez assustadora. Agradam a leigos e especialistas, aqui ou em qualquer parte do mundo, sendo motivo até para grandes criações artísticas como o conto “Nunca aposte sua cabeça com o diabo”, de Edgar Allan Poe, mestre do conto fantástico, sobre a história de um homem que tinha o hábito de apostar tudo, inclusive sua própria cabeça.

Integrando, dentro das noções contemporâneas, o grupo das narrativas Sobrenaturais, as lendas urbanas guardam em si o Estranho (narrativas de medo com uma explicação ao final, O Lobisomem de Tabocal, de Batista de Lima), o Mistério (narrativas de final aberto, sem explicação para o evento sobrenatural, As formigas, de Lygia F. Telles) e principalmente o Fantástico ( narrativas onde a ambigüidade dos fatos e a incerteza do evento são essenciais, A usina atrás do morro, José J. Veiga), lembrando o que faziam Alvarez de Azevedo, o próprio Edgard Allan Poe, Arthur Conan Doyle e, atualmente, autores como Pedro Salgueiro (Belisarina), Sânzio de Azevedo (A capa de chuva) e Dimas Carvalho (Cama de baleia), com textos que nasceram, seguramente, de algumas dessas lendas.

Originária do latim e popularizada em inglês, graças à Sétima Arte, aos satélites e à fibra ótica, a expressão “Lenda Urbana”, urban legend, está cada vez mais atual. Pode-se dizer seguramente que a grande responsável por isso é mesmo a Internet, pois uma história que antes passava de boca em boca, levando anos para cristalizar-se, para integrar o rol das folk tales, agora é passada para milhões de pessoas em poucos minutos. Em poucas horas, um monstro atravessa os continentes para integrar outra cultura ou destruir uma empresa de sucesso que pode ir à falência por uma “maldição” qualquer veiculada pela Internet.

Encontrada em qualquer dicionário, a palavra lenda, ao pé da letra, sem recorrermos a dicionários técnicos de termos literários, quer dizer: narrativa de acontecimentos fantásticos; história fabulosa, conto, tradição popular. No sentido figurado, pode significar mentira ou invenção. Em termos mais simples, é aquela narrativa que tem “um pé na ficção” e “outro na realidade”, ou seja, versa sobre algo de que não se tem mesmo a certeza de que ocorreu, mas que possui um fundo de verdade, uma carga de verossimilhança especialmente assustadora.

Essa verdade oriunda não se sabe ao certo de onde, se da mídia, que as propaga sem oficializá-las, se do talento da pessoa que contou ou se do senso hiperbólico de quem ouviu e passou a reproduzi-la, atinge o mais alto grau de eficiência causando medo, estranhamento, asco, horror etc. causando óbitos nos mais fracos ou mesmo afetando grandes impérios comerciais e fazendo despencar o preço de ações nas grandes bolsas de valores.

Em geral, as lendas urbanas são histórias bem ao gosto do povo, sobre momentos comuns do dia-a-dia que são ameaçados pelo insólito de determinados eventos e tomam proporções assustadoras. Surgem, geralmente, das coisas mais simples tornando-se complexas, nunca o contrário, porque, como afirmou Todorov, a narrativa fantástica é “hiperbólica” e dotada de uma forma toda especial de narração.

As lendas urbanas possuem, como as demais narrativas folclóricas (o mito, a fábula, o apólogo etc.) características bem particulares. Geralmente não se sabe ao certo como nem onde elas surgiram, nem os nomes ou endereços das personagens envolvidas, principalmente das personagens afetadas pelo evento. Surgem, via de regra, a partir de fatos cujos participantes são desconhecidos, pois as testemunhas, se o foram, não sabem mais onde tais pessoas moram, o que delas foi feito. Mas sempre existe alguém que conheceu alguém que conheceu a pessoa que passou por tal experiência, mas o paradeiro é normalmente “ignorado”, adoeceu, morreu ou foi embora.

A narrativa normalmente é breve nos moldes da anedota. A diferença é que a anedota prima pelo humor, enquanto a lenda urbana, pelo insólito, enaltece o estranho, o grotesco, em geral, o fantástico, propagando o medo, a advertência e a fragilidade humana à mercê de um cotidiano violento e assustador. As lendas urbanas assemelham-se muito ao gênero de horror, mas geralmente inserem-se no fantástico, dada a ambigüidade do fato narrado e a incerteza de sua efetivação em nossa realidade.

Com infinitas temáticas, as lendas urbanas são, em geral, boatos hiperbólicos, bordados talentosamente pela cultura popular, sendo dignas de elogio se não trouxessem em seu bojo a comoção popular, a indignação e o desvario, ao trocarem o patético naturalmente cultural e literário pela difamação de ordem comercial, uma vez que em sua tipologia existem textos que vão desde o maravilhoso clássico como A cidade encantada de Jericoacora até uma bonequinha que diz “Hello” ao Diabo ou A Cruz invertida de uma motocicleta, fazendo caírem vertiginosamente as vendas de um importante fabricante de motocicletas.

Pelas esquinas de Fortaleza, por exemplo, nos deparamos a todo instante com várias dessas lendas. Algumas até se confundem por possuírem um caráter migratório como A Loura do Banheiro e A Mulher de Algodão, ambas de origem paulista, que facilmente se adaptaram ao habitat fortalezense. Afinal, quem nunca ouviu falar sobre essas mulheres, ensangüentadas, com algodão no nariz, dentes pontiagudos e amarelados, pedindo ajuda nos banheiros das escolas, sejam elas particulares ou estaduais, uma vez que o medo, sensação que iguala os homens tanto quanto o amor, não tem mesmo classe social.

Também ficaram famosas entre nós as aparições da Perna Cabeluda, na verdade, uma lenda pernambucana que passou a incidir em bairros periféricos de Fortaleza. Verdadeira aberração, o ser imponderável, consiste, segundo as “testemunhas”, numa musculosa e gigantesca perna cabeluda que mata com chutes violentos aquele que dela se aproximar.

Recentemente, nas ruas escuras de bairros como Bom Jardim e Goiabeiras, na grande Fortaleza, estivemos às voltas com mais um ser legendário, a famigerada Hilux Preta, que seqüestra jovens, preferencialmente crianças, para nunca mais. Lembremos que tais “monstros” à gasolina já não eram novidade nos anos 80, quando tivemos um infernal “opala preto” que levava para um passeio, sem volta, qualquer mocinha desavisada que se aventurasse tarde da noite pelas ruas de nossa cidade.

Em Fortaleza, importadas ou não, são inúmeras as lendas, incontáveis os motivos e as “ocorrências” como a “criança morta por uma serpente” em um grande supermercado; um “homossexual que feria transeuntes no centro da cidade e nos cinemas com uma seringa com sangue contaminado pelo HIV”; a “música da Xuxa” que, tocada ao contrário, faz elogios a Satã; uma “marca de maionese” cujo nome quer dizer “homens do inferno”; um funcionário antigo da empresa ferroviária que vira “lobisomem” e mora dentro dos trens abandonados da Praça da Estação…

Nada é certo… são só historias, mas histórias tão estranhas… nada é comprovado, apenas dizem… O que é certo é que tudo isso vem do povo. E se a voz do povo é mesmo a voz de Deus, não é possível que dessa boca saiam apenas mentiras.

(Texto publicado no Jornal O povo)

Vicente Jr. – Coordenador do GRELF (Grupo de Estudos de Literatura Fantástica – Ce)