A distopia na literatura inglesa moderna

A distopia na literatura inglesa moderna – Prof. Dr. Márton Tamás Gémes

Resumo

Este estudo introduz de uma forma breve algumas das distopias principais da literatura inglesa. Estes tematizam principalmente questões como a relação entre homem e sociedade, indivíduo e poder, e o livre arbítrio. Constituem um quadro de crescente descrença na capacidade do ser humano em criar um mundo melhor e, conseqüentemente, no futuro humano.

Abstract

This paper is a brief introduction to some of the principal distopias in English literature. These distopias discuss mainly questions such as the relations between man and society, the individual and power, and free will. They constitute a growing disbelief in man’s capacity of creating a better world and, consequently, also in man’s future.

A voz solitária

Quando Frank O’Connor, escritor e ensaísta irlandês, publicou The lonely voice em 1962, bem que ele estava escrevendo sobre a short story e não sobre a distopia. No entanto, é surpreendente, como a distopia se enquadra em pelo menos dois dos conceitos principais desta teoria: o do “outsider” e o do “frontier experience” (apud Myszor, p.106 e sgs.).

O termo “outsider” se refere em primeiro lugar aos protagonistas, que Myszor chama de “insignificant people” (ibid.), por eles não serem bem incluídos na sociedade em que vivem, por viverem nas margens desta sociedade. No mesmo momento, porém, refere-se também aos escritores, já que estes descrevem esta sociedade de uma forma crítica, envolvendo e forçando o leitor a pensar esta sociedade a partir da questão da exclusão.

A “frontier experience” constaria, segundo O’Connor (ibid.), numa situação, cuja vivência representa para o personagem uma experiência de fronteira, um ponto crucial na sua vida. Este enfrenta uma divisória entre dois estados na sua vida, como aquela entre vida e morte, sanidade e insanidade, infância e adulto, ignorância e auto-conhecimento ou isolação e inclusão na sociedade. É importante assinalar aqui, que esta abordagem não prevê necessariamente a passagem de um estado para o outro, mas tão somente a vivência dessa experiência, com todos os conflitos que a acompanham.

Os personagens principais das distopias modernas estão, de certa forma, numa situação parecida. Um Winston Smith de 1984, um Bernard Marx ou o savage de Brave New World, um Alex de Clockwork Orange são “pessoas insignificantes”, mal ajustadas à sociedade em que vivem e tem que viver. Eles vivem a experiência de não pertencer, de não fazer parte, nem ser importante para esta sociedade, que não satisfaz suas necessidades. E isto os leva a desafiar, conscientemente ou não, as regras sociais vigentes, o que equivale a um desafio ao poder.

No mesmo momento, eles representam um elo de identificação para o leitor, que desta forma se torna um “outsider” também, encarando a sociedade descrita de fora, e de uma forma crítica. Isto significa que ao contrário do conto e da teoria de O’Connor, existe necessariamente a tentativa de levar o leitor a rejeitar essa sociedade. E isto reflete também o objetivo necessariamente central dos autores em escrever distopias, que é o de alertar o leitor sobre a direção em que a sua sociedade está se desenvolvendo. Assim, a distopia se torna, por excelência, uma escrita dos excluídos.

Este artigo pretende analisar e interpretar a partir dessa perspectiva, embora de uma maneira provisória, devido às restrições inerentes a sua extensão, algumas das principais distopias modernas da literatura inglesa. As questões norteadoras são, portanto, aquelas que se preocupam com o nexo entre homem (personagem, autor e/ou leitor) e sociedade (tanto a sociedade atual do momento da escrita, como a descrita). Segundo Thody um “basic criterion” para avaliar distopias é: “…is the situation it describes a convincing projection of what is happening now?”1 (1996, p.183). Mas há outras questões, como por exemplo: as previsões, senão exatamente, mas pelo menos geralmente, realizaram-se ou parecem mais prováveis de se realizar? Quais as preocupações centrais sobre o homem e sua relação com a sociedade que o texto levanta? E, finalmente, por que é o século XX, que se torna o século das distopias, enquanto a utopia se torna uma forma quase extinta?

Utopia e Distopia

Durante toda a sua história, o homem sempre estava, e provavelmente estará, insatisfeito com o estado das coisas: injustiça social, guerras, pragas e pobreza impeliram-no a entender e criticar esse mundo em que vive como um mundo imperfeito. Um mundo que, para que a humanidade possa viver nele, de forma adequada, teria que ser reformado, melhorado.

É, basicamente, essa insatisfação que deu o impulso para um gênero literário e filosófico, o qual podia, de uma forma geral, ser denominado “literatura utópica”. O termo provém da obra Utopia de Thomas More, primeiro publicado em 1516, e que podia ser traduzido como “lugar nenhum”, “o lugar que não é”.

A literatura utópica, no entanto, não começa somente no início do século XVI com Thomas More. A República de Platão, por exemplo, tanto como o mito de Atlantis que ele ajuda a criar e difundir no Critias, já constitui pensamento utópico.

O objetivo básico da literatura utópica, então, é a crítica à sociedade ou ao estado como este no momento está, e principalmente, demonstrar como esta sociedade poderia e deveria ser, dados bastante educação, ou liberdade, ou democracia, ou qualquer outra coisa que o autor valoriza.

Mas pensar uma sociedade ideal e perfeita pressupõe, necessariamente, uma crítica pelo menos implícita da sociedade como ela está e, portanto, uma crítica ao poder. Para poder então expor essa visão crítica sem arriscar a repressão e censura pelas autoridades e instâncias de poder, a solução encontrada pelos autores foi o deslocamento das suas “sociedades utópicas”, ao longo do eixo temporal ou do eixo espacial. Esses dois tipos de deslocamento, embora que não sejam necessariamente exclusivos, determinam os dois tipos básicos da escrita utópica: uma que descreve uma sociedade futura, e a outra, uma sociedade num país longínquo, desconhecido, num outro planeta, etc.

A literatura utópica viveu seu maior florescimento nos séculos XVII e XVIII, devido a preocupação iluminista com a educação racional e com uma sociedade organizada a partir de conceitos racionais ou, nas palavras de Bobbio, o iluminismo “…confiava no poder irresistível da capacidade da razão e tinha um objetivo preciso para conseguir um modelo de cultura inovadora…” (2000, p.1289) . Tanto que nesses séculos a utopia, na interseção entre literatura, política e filosofia, consegue reunir uma multidão de escritores mais diversos, como Francis Bacon (Nova Atlantis, 1627) e J. Harrington (Oceana, 1656).

No entanto, já o início do século XVIII demonstra uma certa desconfiança nos poderes absolutos da razão, desenvolvendo-se então o gênero da anti-utopia ou distopia, que poderia ser chamado “a utopia às avessas”. Uma das primeiras obras, que poderiam ser enquadradas nesse gênero, é Gulliver’s Travels de Jonathan Swift. Mesmo que Swift não tenha ainda desenvolvido todas as características que marcarão o século XX como o “século da distopia”, ele já demonstra um desilusão com as fantasias utópicas – como, por exemplo, a sociedade entediante e, por que não admitir, o autoritarismo cego dos Houyhnhnms virtuosos – mas também a preocupação que, se as coisas não andam muito bem, elas facilmente poderiam estar bem piores. E que o desenvolvimento atual está mostrando exatamente nesta direção.

Erewhon, ou Utopia às avessas

Erewhon, de Samuel Butler, tem ainda com Gulliver’s Travels os aspectos em comum de ser uma distopia espacial – enquanto as distopias seguintes serão todas principalmente distopias temporais – e de ser uma sátira direta da sua época, da Inglaterra vitoriana. Publicado em 1872, causou um grande rebuliço em círculos literários, influenciando profundamente uma geração nova de escritores como Oscar Wilde e G. B. Shaw, a partir do seu ataque mordaz à hipocrisia e complacência vitoriana. Como o título, anagrama de “nowhere”, já sugere, Butler descreve um país imaginário, onde todos os valores são invertidos. Claramente influenciado por Swift, Butler usa a subversão satírica para desmascarar a futilidade da época vitoriana, invertendo todos os valores oficiais, sejam estes sociais ou morais, dando assim uma “…satirical response to the deadening effect of Victorian smugness…” (Coote, 1993, p.573)2. Assim, os Erewhonianos tratam doenças como crime e crimes como doenças. Um certo Mr. Nosnibor, anfitrião do personagem principal, sofre muito de kleptomania, e “…has but lately recovered from embezzling a large sum of money under singularly distressing circumstances…” (Butler, 1996, p.59).3 Para estes casos angustiantes existem então os chamados “family straighteners”, ou “desentortadores de família”, que “curam” os “doentes” com castigos físicos variados, enquanto amigos e vizinhos mandam votos de convalescência.

Beleza e saúde e, por extensão, riqueza representam para os Erewhonianos bondade moral, e portanto fazem em si o indivíduo ser aceito na sociedade. No lado oposto, doenças, azar e feiura e, por extensão, pobreza são vistos como um atentado contra o corpo social e, consequentemente, os “malfeitores” são julgados e colocados em prisões, onde passam o resto da sua existência com trabalho forçado.

Da mesma maneira, Butler inverte a relação entre religião e transações comerciais. A religião, numa crítica mordaz à Church of England, é tratada como uma transação econômica, enquanto o comércio se exerce com devoção religiosa.

Um dos aspectos da Inglaterra vitoriana que mais preocupara Butler, era a questão do tratamento das crianças e a sua educação. Consequentemente, os Erewhonianos acreditam que “To be born […] is a felony…” (Butler, 1996, p.119),4 que os culpados são as crianças, que insistem em nascer, intrometendo-se na vida dos seus pais. Esses então, por sua vez, têm todo o direito de bater e maltratar seus filhos, já que são vítimas dos mesmos. A educação dos filhos torna-se um “fetish” (id., p.125), e eles são mandados para o “College of Unreason” (ibid.), onde estão instruídos em “hypothetical lore” (ibid.)5 para não aprender nenhum ofício, nem qualquer conhecimento que se aproveite.

De certa forma, Erewhon não se caracteriza como uma distopia completa, já que os questionamentos que levanta tratam menos do futuro da Inglaterra e mais de uma avaliação crítica dos valores morais ingleses desta época. Alguns aspectos apontam, contudo, claramente para o futuro, como a preocupação erewhoniana com o poder da tecnologia – que eles simplesmente aboliram – que se tornará uma das preocupações principais do século XX; o fracasso do pensamento e dos valores cristãos como fundamentos da sociedade; o valor religioso, que transações econômicas e dinheiro adquirem; e o culto da beleza e da juventude, que leva à equação moderna entre beleza e bondade moral.

The Time Machine, a sociedade bipartida

Em The Time Machine, Wells empresta o conceito de Disraeli de uma sociedade bipartida – os “haves” e os “have-nots”, descritos programaticamente no romance Sybil, or the two Nations (1845) – e desenvolve esta idéia às suas conseqüências catastróficas, mas lógicas: o protagonista, simplesmente chamado time traveller, viaja para um futuro distante – para o ano 802701 – e encontra ali uma sociedade, na qual as divisões sociais da Inglaterra vitoriana resultaram em duas raças diferentes entre si.

Os “haves”, seres infantis chamados Eloi, descendentes da classe média abastada, vivem num mundo bucólico de jogos e felicidade, num país que produz tudo que eles necessitam sem que eles precisassem trabalhar. Mas o paraíso terrestre tem um preço, e esse é bastante alto: a sua estatura diminuta e fragilidade, junto com a sua infantilidade e a sua incapacidade de se lembrar de qualquer coisa, depois de um curto período de tempo, denota sua decadência física e intelectual.

E tem mais: os “have-nots”, descendentes das classes operárias e do proletariado, que foram degredados para passagens subterrâneas e privados de tudo que é belo e saudável, transformaram-se na terrível raça dos Morlocks. À noite, esses saem das suas passagens subterrâneas, caçam e devoram os Eloi como se fosse gado. Nessa raça também se nota a decadência, embora do aspecto espiritual, do lado humano.

Seguindo sua viagem, o time traveller encontra uma terra sem homens, só com formas mais simples de vida, e em seguida o momento antes da destruição da terra. Wells usa aqui a teoria evolucionista do “…Rückschritt in der Naturordnung zu primitiven Lebewesen…”6 de T.H. Huxley – avó de Aldous Huxley – que era seu professor na Royal College of Science (Fabian, 1991, vol.2, p.424). O fato de Wells não deixar o time traveller voltar da sua última viagem, pode ser interpretado como uma tentativa de abrandar o futuro sombrio da humanidade, visto que a questão fica em aberto, se o protagonista teria morrido ou achado talvez um futuro melhor.

De qualquer maneira, as preocupações profundas com a situação social na Inglaterra no fim do século XIX se traduzem nesta obra numa advertência fortíssima sobre o futuro. E com isso, Wells define a forma básica que as distopias do século XX seguirão, quer dizer, a de uma sociedade pior do que a atual, embora que seja uma conseqüência lógica desta.

Vale assinalar, porém, que tanto em Wells, como em Butler, os protagonistas estão ainda numa posição privilegiada: já que são “outsiders” em todos os sentidos da palavra, por terem chegado de fora, eles podem afinal sempre fugir dessa sociedade distópica, porque ainda há um lugar (ou um tempo) melhor. As distopias que seguem, não deixarão mais em aberto essa opção: por ter nascido e por pertencer à sociedade distópica, o protagonista não tem mais para onde fugir, ele está forçado a conviver, a construir a sua existência dentro da distopia. É principalmente esse fato que emprestará às distopias modernas seu caráter sombrio e desesperador.

Huxley e a questão do livre arbítrio

Segundo Hauser (Kindlers, vol. 8, p.230), Brave New World de Aldous Huxley, publicado em 1932, constitui, junto com My (1924) de Zamyatin e 1984 (1949) de Orwell uma espécie de trindade clássica da distopia. Em contraste a Wells, esses três autores introduzem um novo aspecto na distopia, que é a penetração total da sociedade pelo poder, o que exclui qualquer possibilidade de fuga por parte do protagonista.

Se Wells e Butler ainda estavam principalmente interessados em questões sociais, e como a sociedade se evoluiria, Huxley introduz uma temática muito mais fundamental na literatura inglesa, que acompanhará esta para o resto do século: a questão do livre arbítrio e como o homem se relaciona com o poder do estado moderno – e como ele pode ou não se defender do mesmo. Tanto como as dúvidas sociais de Wells e sua visão evolucionista, isso também é uma reação às imposições da realidade, à criação dos estados totalitários na União Soviética e na Itália, tanto quanto à ameaça nazista na Alemanha. Com o progresso tecnológico e com as ideologias totalitárias necessariamente se põe a questão dos limites do poder do estado.

A perfídia do futuro huxleyano é que – pelo menos para a maioria esmagadora de humanidade – realmente é uma utopia. Estamos “…in this year of stability, A.F. 632…”7 (Huxley, 1981, p.16), o mundo é unificado sob um único governo, cujo lema é “Community, Identity, Stability”8 (id., p.15). A data “A.F. 632” significa “after Ford”, referindo-se ao industrial norte-americano Henry Ford – que introduziu a esteira na produção industrial – denotando assim a mecanização e massificação tanto desse mundo novo como do ser humano. Contrário a Ford, que afinal só produzia carros, essa nova sociedade produz o ser humano, e o produz da maneira que ela necessita. Crianças são produzidas em incubadoras e programadas com técnicas pavlovianas, não somente para serem aptos a exercer suas funções planejadas antecipadamente na sociedade, como também – e isso é o mais importante – para serem felizes com estas funções. O ser humano se torna aqui, como diz Huxley no prefácio, um “human product”, que precisa de “standardization” (id., p.13), como qualquer outro produto industrial, para que não seja um “round peg in a square hole” (id., p.47)9. Isso é necessário, porque programação significa aqui tanto programação física – ainda dentro da incubadora – como programação mental, da maneira que um trabalhador vai querer ser trabalhador, sendo apto para isto, e um escravo vai querer ser escravo, etc. Com isto, a sociedade huxleyana consegue resolver um dos principais problemas das sociedades humanas: a insatisfação do homem com seu estado social, e tudo que esta acarreta: inveja, agressividade, criminalidade, revoluções etc. Quer dizer, se a humanidade não é capaz de mudar a sociedade para que seja justa, é melhor mudar o homem, para que não sinta a desigualdade, e até seja feliz com ela.

Mas o estado novo está preparado para isto também. Se, por acaso, o homem se sentir infeliz ou agressivo, sempre existe sexo livre (sempre com parceiros diferentes e sem o ônus da gravidez) e a droga da felicidade “soma”. Obviamente, para que isto funcione, Huxley tem que abolir a unidade familiar e a questão do amor. Seu homem futuro, planejado e criado cientificamente, vive num estado de felicidade e tranqüilidade contínua; todos recebem a vida da qual sonhavam. E isso em sentido duplo, já que a programação mental é feita principalmente quando a criança dorme, direcionando assim seu subconsciente para querer exatamente aquilo que receberá depois.

É importante assinalar aqui, que o governo futuro é essencialmente uma ditadura benévola, ou, como diz Scavone, um “…totalitarismo imposto, mas não despótico” (1984, p.103). Ele não somente produz o homem que quer, mas assegura, dessa forma, que este homem seja feliz. Visando “Community, Identity, Stability”, ele fixa o homem no seu estado, criando assim uma sociedade estável.

No entanto, este paraíso terrestre também não é perfeito: para que essa sociedade funcione, tanto o amor como a individualidade tiveram de ser erradicados, já que são opostos à felicidade da sociedade como um todo. Mas isso significa também a negação de tudo o que é especial no homem individual, e restringe suas capacidades; conseqüentemente, o homem huxleyano não é capaz de entender, por exemplo, Shakespeare, porque ele é incapaz de entender o conceito de escolha, de escolha entre o bem e o mal. Ora, isso significa em última instância – finalmente é esse aspecto que deixa a distopia huxleyana tão sombria – a negação do livre arbítrio. Ou, em outras palavras, o que faz do homem um homem? A possibilidade de escolher entre o bem e o mal, e a consciência que essa escolha terá conseqüências? Vale a pena fazer o ser humano feliz, se para isso tem que roubá-lo dessa capacidade? Será que o homem ainda é homem sem ela?

Mas essa negação de escolha, que é pré-requisito à tendência de, como diz Hannah Arendt, “…destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem, tornando-o estranho assim ao mundo e privando-o até do seu próprio eu…” (in Bobbio, 2000, vol.2, p.1248) é próprio ao estado totalitário. Só que esse estado não usa o terror institucionalizado, apontado por Arendt como aspecto fundamental, porque não o necessita – como diz Mustafa Mond, o “Resident World Controller”: “Government’s an affair of sitting, not hitting. You rule with the brains and the buttocks, never with the fists” (Huxley, 1981, p.49).10 As diferenças sociais e individuais se dissolvem no consumismo – “Ending is better than mending. The more stitches, the less riches…” (ibid.)11, no sexo livre e nas drogas, sem falar no condicionamento perpétuo. E o homem nem percebe que perde com isto tudo o que o faz homem, já que esta sociedade nunca o deixa sozinho e o ensina a nunca se negar nada. E tudo isto até parece bom, quando Mond mostra ao savage a alternativa:

‘In fact,’ said Mustafa Mond, ‘you’re claiming the right to be unhappy.’

[…]

‘Not to mention the right to grow old and ugly and impotent; the right to have syphilis and cancer; the right to have too little to eat; the right to be lousy; the right to live in constant apprehension of what may happen tomorrow; the right to catch typhoid; the right to be tortured by unspeakable pains of every kind.’12

E o savage responde: “I claim them all” (ibid.)13. Mas, e isso é significante, junto com tudo isto ele também reivindica o direito à poesia, Deus e à liberdade. A escolha, como diz o próprio Huxley no prefácio, é entre “…insanity on the one hand and lunacy on the other…” (id., p.7)14, ou entre exílio e conformidade. A sociedade huxleyana não permite outra.

1984

If you want a picture of the future, imagine a boot stamping on a human face – for ever.”15 (Orwell, 1983, p. 270). Ao contrário da visão de Huxley, o totalitarismo orwelliano não tem nada de benévolo. Nasceu das experiências decepcionantes de Orwell com o comunismo e se inspirou nos estados totalitários, a União Soviética e a Alemanha Nazista. O partido – Ingsoc, ou “English Socialism” – que governa esse novo “superestado” chamado Oceania, optou pela opressão violenta e total, em vez da felicidade.

Os conceitos de um regime totalitário apontados por Arendt, inclusive a penetração total do estado civil pelo poder, o terror total, representado aqui pela “thought police”, ou “polícia do pensamento”, a ideologia e a personificação do poder, na pessoa provavelmente fictícia do “Big Brother”, encontram-se todos aqui de uma forma cristalina. Tanto que a cifra “1984” – e expressões como “Big Brother” e “orwelliano” – se tornou, efetivamente, a expressão usada tanto para distopias opressivas e totalitárias, como para qualquer ato ou instituição que desconsidera ou reprime a manifestação do livre arbítrio do indivíduo.

É provavelmente em 1984 e no seu autor, que a aplicabilidade do conceito o’connoriano do “outsider” se mostra com maior nitidez. Orwell era o “outsider” proverbial, o policial colonial em Burma16, que não conseguiu conviver com a idéia do império e do “white man’s burden”17; o intelectual burguês esquerdista de boa educação (inclusive Eton), que sempre simpatizava com o trabalhador como classe, admirando-o como força teórica, mas sem conseguir entendê-lo na realidade, mesmo que convivesse com ele;18 e o socialista idealista, que lutou na Espanha na milícia do partido anarquista POUM, só para ser caçado e quase morto não pelos fascistas, mas pelos comunistas servos à União Soviética, supostamente seus aliados.19

Ora, o protagonista Winston Smith, de 1984, representa também o “outsider” arquetípico, como já seu nome denota: o nome “Smith” representa, como o “da Silva” brasileiro, o inglês proverbial do povo. “Winston”, no outro lado, se refere nitidamente a Winston Churchill, o primeiro ministro da guerra, conservativo e homem do “establishment”. Assim, seu nome denota seu caráter ambíguo, entre trabalhador e homem do povo de um lado, e intelectual e membro do partido do outro. Não é uma surpresa, então, que acredite nos “proles” – o proletariado excluído – como uma força revolucionária, mas logo se decepcione com eles: sua imagem do trabalhador é um abstrato, o indivíduo e seus desejos ele não entende, como mostra claramente seu encontro com o velho no “pub”(Orwell, 1983, p. 86 e sgs.), e o incidente das mulheres brigando pelas panelas (id., p. 69 e sg.).

Mas, na verdade, não é de se admirar muito de Winston Smith ser um “outsider”, já que a sociedade em que vive cria “outsiders” com tanta facilidade como a sociedade huxleyana cria crianças. Logo depois da 2a Guerra Mundial, os aliados entraram em conflito e se devastaram numa guerra atômica. O resultado são três “superestados”, igualmente totalitários; a Inglaterra, agora chamada “Airstrip One”20, é parte de um deles, “Oceania”.

Inspirado em técnicas de repressão usados pelos totalitarismos europeus, mas também na propaganda britânica durante a guerra (Thody, 1996, p. 172), o partido orwelliano “Ingsoc”, constituído por cerca de 15% da população, mantém o poder absoluto, relegando os outros 85%, os chamados “proles”, ao trabalho braçal. Esse fim se alcança mantendo Oceania em estado de guerra contínua, tanto externa – com um ou outro dos dois outros “superestados” – como interna, contra o contra-revolucionário Goldstein, figura provavelmente mítica. Esse estado de guerra tem dois objetivos: mantém a população num estado permanente de mobilização e ódio, e explica a escassez da produção de bens. Mas essa última também não é por acaso: o cidadão, preocupado com a sobrevivência, e necessitando das coisas mais básicas, não dispõe desta maneira nem de tempo, nem de energia para pensar sobre o papel do partido, ou sobre seus direitos cívicos.

Vigiado e monitorado o tempo inteiro por “telescreens” – televisões instaladas em todas as casas e praças públicas – pelos colegas e os próprios filhos, que são educados para denunciar qualquer comportamento ou pensamento divergente, o cidadão de Oceania se sente amedrontado, acuado até o ponto de nem sequer ousar pensar diferente do partido. Até pensar diferente é um crime, o “thoughtcrime”. Acrescenta-se a isto uma propaganda contínua, a extinção da esfera privada, e a repressão policial absolutamente arbitrária pela “thought police”.

Porém, como Burgess diz (1981, p. 21 e sgs.), isto não é nada de novo: a realidade econômica de 1984 é aquela da Inglaterra pós-guerra, enquanto a situação política é uma descrição fiel da Alemanha nazista e a União Soviética de Stalin. No entanto, em 1984 dois aspectos do totalitarismo do cunho soviético são levados à perfeição: o que são chamados “newspeak” e “doublethink”21, respectivamente. O “doublethink” é

To know and not to know, to be conscious of complete truthfulness while telling carefully constructed lies, to hold simultaneously two opinions which cancelled out, knowing them to be contradictory and believing in both of them...22 (Orwell, 1983, p.34)

Essa técnica é necessária, porque o partido reivindica para si o direito único de dizer o que é verdade e o que não é. Isso significa que a verdade se torna uma questão de conveniência partidária, mudada continuamente para atender as necessidades do Ingsoc. Mas o poder sobre a verdade é o poder absoluto, e Orwell leva isto, seguindo o exemplo da União Soviética, ao extremo: o partido não somente define o que é verdade agora, mas também o que era verdade no passado. Para isto, todos os jornais, livros e comunicados são revistos e reelaborados continuamente, para corrigir erros do Big Brother, ou para expurgar “non-persons”, pessoas que eram influentes, mas foram exterminados.23 Com isso, mantém-se a população em constante ignorância, chegando o momento que a verdade do Ingsoc se torna verdade absoluta, já que não vive mais ninguém que se lembre dos fatos.

O “newspeak” representa o jargão de neologismos do partido, que a partir da simplificação absoluta da língua tenta regulamentar aquilo que o homem é capaz de expressar e pensar: “The purpose of Newspeak was not only to provide a medium of expression for the world-view and mental habits proper to the devotees of Ingsoc, but to make all other modes of thought impossible.”24 (Id., p.301).

É, na verdade, esse aspecto de 1984, que torna-o uma distopia tão assustadora: o poder sobre a língua que o homem fala, e os pensamentos que ele é capaz de pensar, junto com sua consciência de seu passado, atingem o ser humano no seu âmago. Orwell coloca aqui então, de uma forma um tanto diferente de Huxley, a mesma questão: quando o homem não é mais capaz de ter suas próprias opiniões, ele ainda é homem? Qual é o futuro de uma humanidade que não tem passado?

No entanto, a distopia orwelliana demonstra algumas fraquezas, como Burgess demonstra claramente no seu prefácio a 1985 (1981, p. 21 e sgs.): a exclusão total de 85% da população, os “proles”, faz com que a penetração total da sociedade pelo partido seja um tanto duvidosa. Sem falar, que viver na Londres orwelliana como “prole” é aparentemente muito mais livre e seguro do que, por exemplo, nos morros do Rio de Janeiro em 2004. Também, mesmo com “doublethink” e perseguição, é meio difícil acreditar, que com somente 30 anos de estado totalitário não existem mais memórias individuais, nem jornais, livros etc.

Mesmo assim, Orwell conseguiu, preocupado com a ascendência de pensamento totalitarista nos intelectuais britânicos da sua época, colocar a questão da (im-)possibilidade do livre arbítrio numa sociedade totalitarista, e o que isto acarreta para o ser humano. Que Winston Smith não somente falha, mas, depois de uma lavagem cerebral no “Ministry of Love”, desiste do seu livre arbítrio e se torna um adepto fervoroso do Ingsoc, é uma das mais fortes advertências contra o totalitarismo, seja esta da direita ou da esquerda.

The Lord of the Flies e o homem animal

Já que a realidade é tão negativa, o homem sempre sonhou em mudar ou, melhor ainda, em começar de novo. É esse pensamento que está no fundo tanto dos movimentos milenaristas, como também do escapismo individual. A idéia de, como um Robinson Crusoe, começar tudo de zero, para construir uma sociedade melhor, é um dos mitos mais duradouros da humanidade. A época vitoriana, com todas as suas restrições, sua moralidade e sua inflexibilidade, criou vários destes mitos. Um destes, que obteve grande sucesso na época, e marcou a consciência britânica, é The Coral Island de Ballantyne, publicado em 1858. Nesse romance, um grupo de crianças sobrevive numa ilha deserta, graças às suas virtudes “brancas” e “inglesas”, demonstrando assim a suposta superioridade do homem e da cultura européia.

Golding retoma e inverte esse romance em 1954, inclusive até usando os mesmos nomes que Ballantyne deu aos seus heróis. Nesse caso, os meninos chegam à ilha depois da queda do avião, que os levaria longe de uma guerra atômica. Sem adultos por perto, eles tentam construir uma sociedade a partir dos conceitos da sua educação: uma sociedade livre e democrática, onde os mais fortes defendem e amparam os mais fracos, e todos trabalham em conjunto pela sobrevivência. Mas esse paraíso desmorona “…in the face of terror, sin and evil…”25 (Bradbury, 1994, p. 327): um grupo de meninos, que faziam parte de um coro antes, rompe o contrato social sob a liderança de Jack, e degenera em uma horda de caçadores selvagens. Isso vai até o ponto de eles adorarem em cultos ritualísticos o corpo de um pára-quedista morto, coberto de moscas, que eles vêem como um ser poderoso que precisa ser apaziguado. No outro grupo, os meninos Ralph, Simon e Piggy, representando aspectos diferentes da humanidade como Golding a vê, tentam manter o grupo unido e os fogos de sinalização acesos.

Mas, como Golding disse, “man’s nature is sinful and his state perilous”26 (apud Bradbury, 1994, p. 327). A selvageria vence e os meninos chegam ao que um dos meninos chamaria “the end of innocence, the darkness of man’s heart”27 (Golding, 1986, p.176): Simon termina despedaçado num ritual selvagem, enquanto Piggy é caçado e assassinado. Só Ralph escapa, para tentar explicar o que aconteceu ao oficial do navio que veio buscá-los.

Mesmo que de uma forma alegórica, Golding coloca, tanto como Huxley e Orwell, a questão do livre arbítrio. No entanto, sua questão é outra: o que o homem faz com o livre arbítrio quando o obtém? De uma forma quase hobbesiana, Golding retrata o homem como um monstro, que só se salva a partir da sua educação, da sua cultura. Mas essa educação é como um folheado fino e frágil, que mal consegue esconder o monstro embaixo e se desfaz sob a menor pretensão. Os meninos de Golding mostram ao leitor uma imagem impiedosa de si mesmo, que lembra muito mais dos Yahoo de Swift, do que de Winston Smith em 1984 ou do selvagem em Huxley. Golding mesmo disse, e isto já demonstra como ele se distancia da preocupação destes outros com o totalitarismo, que The Lord of the Flies era uma tentativa,

…die Gebrechen der Gesellschaft auf die Gebrechen der menschlichen Natur zurückzuführen. Die Schlußfolgerung ist, daß der Zustand einer Gesellschaft vom sittlichen Bewußtsein des einzelnen abhängt und nicht von irgendeinem politischen System, mag es noch so sittlich und ehrbar erscheinen…28 (in Kindlers, 1988, vol.6, p.569).

Burgess: o problema não é o totalitarismo

Chegando o fim da década de 60, tornou-se cada vez mais claro, que os estados mundiais que preocupavam Huxley e Orwell não iam se realizar, ou pelo menos não daquela maneira. Anthony Burgess levantou, nos seus dois romances A Clockwork Orange e 1985 – este último uma resposta direta a 1984 – alguns questionamentos e noções novos, que estão muito mais perto aos problemas de hoje.

Em A Clockwork Orange já o título remete à velha questão do livre arbítrio: a palavra “clockwork” lembra da máquina, do artifício, enquanto “orange” do natural, orgânico. O protagonista Alex é um desses jovens de classe baixa urbana que nunca tiveram uma perspectiva na sociedade. Marginalizado e revoltado contra a sociedade, seu passatempo é ouvir Beethoven e, junto com seus “droogs”29, sua gangue, fazer um “horrorshow”, o que significa qualquer tipo de crime que tenha bastante violência. Mas suas tendências destrutivas e seus desejos patológicos por prazer e violência são conscientes: “But what I do I do because I like to do.”30 (Burgess, 1983, p.34)

No entanto, depois de ser traído por seus “droogs”, Alex é submetido na prisão à “técnica de Ludovico”, um método neo-skinneriano de recondicionamento. O que parece ser, à primeira vista, uma tentativa bem-intencionada de resocializá-lo, já que o condiciona a sentir nojo e mal-estar físico, cada vez que vê violência se mostra, na verdade, como a destruição do ser humano: “He ceases to be a wrongdoer. He ceases also to be a creature capable of moral choice”31 (Id., p.99), diz o pastor penitenciário. Alex se tornou a verdadeira laranja mecânica, algo que parece orgânico, vivo, mas é uma máquina. De malfeitor, tornou-se vítima dessa mesma sociedade que ele atormentou. A questão de Burgess é, podemos, para assegurar a vida tranqüila de uma maioria, destruir a humanidade do indivíduo?

A resposta aparece com mais nitidez no romance 1985. A Inglaterra se transformou, em vez de ser o “Airstrip One” de Orwell, em “TUKland”, “The United Kingdom Land”, ou “Trade Union Company Land”.32 É um país paralisado pelas greves dos sindicatos, que mandam em tudo em prol da igualdade e dos direitos positivos do trabalhador, e comprado por milionários árabes com petro-dólares. A odisséia do protagonista Bev Jones começa, quando sua esposa morre num incéndio de hospital, que os bombeiros, por estarem em greve, não apagaram. Inicia-se aqui sua revolta contra o sistema: “What started as self-protection has become an immoral power-bloc”.33 (Burgess, 1981, p. 114)

Isto significa, o que começou como algo bom e até necessário, quer dizer, a defesa dos direitos trabalhistas, tornou-se uma praga. Isto é, o que é bom para a maioria, não é necessariamente bom nem para o indivíduo, nem para a sociedade como um todo. Burgess foi muito criticado por essa obra, chamado de conservador e até reacionário, mas sua pergunta é ainda válida: para que serve uma sociedade construída a partir de conceitos humanos, se ela não consegue garantir ao indivíduo o direito de discordar? Aqui se discerne a visão pelagiânica, e não agostiniana, do homem em Burgess: o homem, nascido fora do contexto do pecado original, nasce com a capacidade de escolher o bem. Mas essa escolha tem que ser uma escolha consciente, e se essa for lhe negada, tira-se também seu caráter humano.

Em vez de uma conclusão:

Um novo milénio e The Plato Papers

Que o século XX testemunhou o maior florescimento da literatura distópica não parece muito surpreendente: a carnificina da 1a guerra mundial, ideologias totalitárias, o holocausto e Auschwitz, Hiroshima, Vietnam e Agent Orange, mas também o desenvolvimento vertiginoso da tecnologia e da ciência e a impossibilidade conseqüente do indivíduo dominar mais do que uma ínfima parte do conhecimento deixaram o homem acuado, amedrontado. O sentimento mais típico do século XX parece ser aquele do homem, que se sente excluído, um “outsider”, sem influência, uma vítima da sociedade, do sistema, que não atende às suas necessidades.

Nem parece, portanto, muito importante, se esse mundo exterior quer ativamente destruí-lo ou não: o importante é que é um mundo destruidor, alienante, que não dá espaço ao homem para se desenvolver. As únicas maneiras possíveis de encarar este mundo parecem então ser a distopia ou a sátira: ou chorar, ou rir, mas discordar. Porque a última alternativa – é esse o caminho que a sociedade pós-moderna parece seguir – é a alienação absoluta em viver o momento por si só, que leva ao narcisismo. O passado e o futuro, nesse novo milênio, se tornam menos e menos importantes, não porque não tenham importância, mas porque o homem lhes nega a importância. E então o homem paira no ar, sem saber de onde vêm, nem para onde vai, centrado em si e cego para o mundo.

É exatamente nesse ponto que começa The Plato Papers de Peter Ackroyd. A ação se desenrola no ano 3700. A nossa época, agora chamado “Age of Mouldwarp”, terminou em 2300, com a extinção do sol. As pessoas vivem em pequenas aldeias distantes uns dos outros, sem tecnologia ou comunicação e parecem ter desenvolvido a capacidade de emitir luz. Plato (Platão), por não ter outra capacidade a não ser a da fala, é nomeado orador público para a instrução dos jovens. Em ocasiões rituais, ele discursa sobre a história da cidade, e tenta explicar conceitos mouldwarpianos difíceis, tais como “information”, “spin theory” e o romance satírico de Charles Dickens, On the Origin of Species.34 As interpretações de Plato são absurdas, mas se percebe que a falha é mais profunda: a falta de conhecimento sobre o passado. Mas quando Plato encontra (realmente, ou sonhando?) um caminho subterrâneo para o Londres do século XX, e volta para explicar para seus contemporâneos como a época da tecnologia era, ele será acusado de corromper a juventude. Em conseqüência, sendo visto como um louco, ele escolha o exílio.

O questionamento principal de The Plato Papers parece ser sobre as limitações da nossa perspectiva, a falta de interesse que demonstramos no mundo ao nosso redor, o que põe em perigo a nossa própria cultura:

I know that other ages, like that of Mouldwarp, refused to countenance or understand any reality but their own. That is why they perished. If we do not learn to doubt, then perhaps our own age will die. Now you are laughing at me again. Perhaps I have become a fool, to make you wise.35 (Ackroyd, 2000, p.133)

Ackroyd, através de Plato, não parece mais se preocupar muito com a questão do livre arbítrio. Talvez porque, para exercer o seu livre arbítrio, o homem devia ter uma mínima noção, um mínimo interesse no mundo que o cerca. Senão, livre arbítrio se torna simplesmente egoísmo. Assim parece que o novo e velho inimigo do homem não é o totalitarismo, nem uma tecnologia desenfreada, mas sua própria falta de interesse. A humanidade pode muito bem estar caminhando para uma sociedade narcisista, que vive somente no presente, como Huxley advertiu. Mas para isto, nem sequer uma guerra ou um despotismo é preciso: aparentemente, o homem gosta de se alienar por si só.

Bibliografia

Textos Primários

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Textos Secundários

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WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. Trad.: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

1 “…a situação que [o romance] descreve é uma projeção convincente daquilo que está acontecendo agora?” Todas as traduções neste artigo são do autor, exceto onde anotado.

2 “…resposta satírica ao efeito abafador da complacência vitoriana…”

3 “…se recuperou há pouco de ter sonegado uma quantia grande de dinheiro sob circunstâncias angustiantes…”

4 “Nascer é um crime capital…”

5 “fetiche”, “Colégio da Desrazão” , “conhecimento hipotético”

6 “…regresso na ordem natural às formas de vida primitivas…”

7 “…neste ano de estabilidade, D.F. 632…”

8 “Comunidade, Identidade, Estabilidade”

9 “um pino quadrado em orifícios redondos”

10 “governar é caso de sentar, não bater. Você governa com a mente e as nádegas, nunca com os punhos”

11 “Inutilizar é melhor do que remendar. Quanto mais se remenda, menos se enriquece…” Tradução de SCAVONE, p.103.

12 ’Na verdade,’ disse Mustafa Mond,’você reivindica o direito de ser infeliz.’

[…]

‘Sem falar do direito de envelhecer e se tornar feio e impotente; o direito de ter sífilis e câncer; o direito de ter pouco demais para comer; o direito de estar cheio de pulgas; o direito de viver em constante apreensão de que podia acontecer amanhã; o direito de adoecer de tífo; o direito de ser torturado por dores indescritíveis de todos os tipos.’

13 “Eu os reivindico todos”

14 “…insanidade de um lado e loucura do outro…”

15 “Se queres uma imagem do amanhã pensa numa bota esmagando o rosto humano – para sempre”

16 Veja também a obra Burmese Days.

17 “O fardo do homem branco“. Frase célebre de Rudyard Kipling, denotando o esforço e os sacrifícios do homem branco para levar o “progresso” e a “cultura” para os povos indígenas das colônias, por definição “atrasadas”.

18 Veja também as obras Wigan’s Pier e Down and Out in London and Paris.

19 Veja também a obra Homage to Catalonia.

20 “Aeródromo Um”

21 “novofalar” e “duplopensar”, tradução de Scavone.

22 “Saber e não saber, estar consciente de completa sinceridade enquanto contando mentiras cuidadosamente elaboradas, manter simultâneamente duas opiniões que se excluem, sabendo que são contraditórias e acreditando em ambas…”

23 Um caso célebre dessa técnica é o apagamento da imagem de Trotski e de outros comunistas de alta escalão de fotografias da Revolução bolshevista, depois de Stalin chegar ao poder.

24 “O propósito de Newspeak era não somente providenciar um médio de expressão para a visão de mundo e dos hábitos mentais apropriados aos adeptos do Ingsoc, mas também tornar quaisquer outros modos de pensar impossível”

25 “…em frente do terror, do pecado e do mal…”

26 “a natureza do homem é pecaminosa, e seu estado perigoso”

27 “o fim da inocência, a escuridão do coração do homem”

28 “…reconduzir os defeitos da sociedade aos defeitos da natureza humana. A conclusão é, que o estado de uma sociedade depende da consciência ética do indivíduo, e não de um sistema político, o mais ético e honesto que este pareça…”

29 “amigos”. Burgess criou para esse romance uma gíria dos jovens de gangue, uma mistura do russo e do cockney.

30 “Mas eu faço o que faço porque eu gosto fazer”.

31 “Ele cessou de ser um malfeitor. Cessou também de ser uma criatura capaz de escolha moral”.

32 “País da Companhia dos Sindicatos”.

33 “O que começou como autodefesa, terminou em ser um bloco imoral de poder”.

34 Aqui se mostra o aspecto satírico de Ackroyd: já que se sabe que existiu um romancista chamado Charles Dickens no século 19, e no único exemplar da Origem das Espécies só dá para decifrar o nome Charles, as pessoas pensam que essa deve ser obra de Dickens e, portanto, um romance.

35 “Sei, que outras épocas, como aquela de Mouldwarp, se recusaram a aceitar ou entender qualquer realidade a não ser sua própria. Pereceram por isso. Se nós não aprendemos a duvidar, então talvez nossa própria época morrerá. Agora vocês estão rindo de mim de novo. Talvez me tornei um bobo, para tornar vocês sábios”.