Vigília de almas:
Yara Carvalho
O caminho era calmo, desde sua infância essa era a única forma como ela conseguia descrever os pouco mais de sessenta minutos que levavam de sua casinha no interior até a cidade mais próxima.
Era uma estrada de terra, aqui e ao longe podiam se ver algumas luzes das poucas casas afastadas. A vegetação era linda na luz do pôr do sol, mas àquela hora a Caatinga acinzentada parecia um mau agouro, como as velhas gralhas que não paravam de chiar. Se ela não se enganava, eram dizeres de sua avó que aqueles cantos das aves da noite eram anúncio de morte próxima. Que não fosse a dela, era o pensamento que a rodeava enquanto ela fitava a escuridão a sua frente na estrada.
“Mas também, que ideia sair essas horas!”
Ela sabia que esses seriam os dizeres de sua mãe ao vê-la chegar em casa às três e pouco da madrugada. Mas que remédio, afinal ela não poderia voltar a dormir depois do aviso de sua mãe sobre seu pai moribundo.
“Nas últimas”. Não haviam sido essas as palavras que sua mãe dissera? Então pronto, apenas pegou a bolsa que usava no trabalho, onde já guardava alguns itens pessoais, e a chave do carro. Bastava aquilo. Ela sabia que na casa dos pais não lhe faltaria nada quando chegasse.
Mas o pouco costume ao dirigir em baixa luz já lhe incomodava. Os olhos ardiam por força-los a ver o nada que estava a sua frente. De lado, via as árvores encovadas e já dizia um pai nosso. Não era das mais crentes em assombrações, mas nunca se sabe nesses assuntos de almas. As luzes coloridas das casas, pareciam cada vez mais com os olhos de bichos quando, pelo sono, seus olhos piscavam.
Finalmente chegou ao seu interior, precisava ainda achar as entradas certas entre as casas do lugarzinho. Já fazia uns anos que não ia lá, as memórias dos últimos enterros rondavam-lhe a cabeça, o último havia sido de seu Tio Jacinto. Ele era homem valente, vivia cantando glórias por morar fora, e na última vez que voltou ao lugar foi só para bater o carro em um bar e morrer embriagado. Morte suja, porém adequada. O que se podia dizer?
Chegando ao portão da casa viu dois homens entrando na casa, “decerto vieram velar pela alma”, pensou a moça vendo as roupas pretas que eles vestiam. Estacionou o carro ao lado do velho sabugueiro da família que estava ainda mais robusto do que ela lembrava-se.
Entrando na casa viu a mãe, o velho sermão veio rápido, então entrou no quarto do velho pai. Os dois homens estavam lá junto a ele, um lhe parecia familiar, mas ela apenas cumprimentou-os com um leve meneio de cabeça e sentou-se no tamborete da mãe.
Pegou a mão do pai nas suas e fitou-o. Ficou assim ainda durante um tempo, até que ele apertou sua mão. Olhou pra ela e olhou para os homens, parecia confuso. Tentando acalma-lo ela perguntou se o pai podia lhe apresentar os amigos, ele a encarou por uns segundos e apontou para dois retratos na sala, o de seu Tio falecido e o dela própria. Quando voltou-se para seu pai novamente, ele já estava morto, não esperou o último olhar intrigado de sua filha.
A mãe apareceu a porta e lhe deu amparo, os homens foram embora tão rápidos que nem vira. O quarto e a casa fizeram silêncio, as aves levantaram voo de cima da casa e só se ouvia a velha árvore zumbindo com o vento.
No dia seguinte, deram-se velório e enterro. Todos da localidade estavam lá, até aqueles que era sabido que se estranhavam com a família. Ninguém lhe dirigiu a palavra, afinal não viam com bons olhos “o povo de fora”. Depois de todos os pesares recebidos, a mãe e a filha voltaram para a velha casa vazia. A mãe foi até a cozinha e voltou trazendo um líquido forte para beberem. Passou pelo novo quadro na parede e sentou-se junto a filha na varanda. Mas algo ainda rodava na cabeça da jovem.
“Mãe, quem eram os dois homens de preto que estavam aqui ontem?”
“Ninguém estava aqui ontem”
“Como não? Entraram antes de mim, saíram assim que o pai morreu!”
A mãe a olhou um minuto e, então, voltou-se para a porta do quarto onde o marido morrera.
“Engraçado, você me perguntou o mesmo quando ela morreu”.