O Verde e Fantástico – Francisco Vicente de Paula Júnior
Resumo:
Este breve estudo procura demonstrar a utilização do verde em textos de temática sobrenatural, principalmente em textos pertencentes ao gênero fantástico, atualmente com uma concepção bem mais ampla, quando não parece haver muita diferença entre maravilhoso, fantástico ou ficção científica.
Palavras-chave: Fantástico; Evolução; Verde
Abstract
This paper studies the use of the colour green in texts of the supernatural, especially in texts that belong to the fantastic genre. Nowadays, this conception is very broad and there doesn’t seem to be a lot of difference between the marvellous, the fantastic and science fiction.
Key words: Fantastic; Evolution; Green
I.
Quando Locke, Peirce e Cassirer 2 nos exortaram à “investigação” dos signos, certamente, já sabiam o que iria acontecer: as palavras seriam exploradas em todas as suas dimensões, em todos os seus potenciais morfossintáticos e principalmente semânticos. Iniciou-se uma leitura do subentendido, uma busca pelo imanente tão importante quanto necessária.
É bem verdade que a utilização de palavras semanticamente ricas, a bem da Poética, já existia em toda a literatura mundial, mas transformar essa atitude em uma prerrogativa estética, demonstrando a consciência e a intencionalidade desse processo, não desconsiderando o cultismo barroco, refulgiu, principalmente, a partir do século XIX.
E já que estamos falando de palavras que não são apenas palavras, mas símbolos, nos reportamos às cores, não por serem realmente o melhor exemplo para o que discutimos neste preâmbulo, mas porque algumas dessas cores ( no caso, o preto, o vermelho, o amarelo, o azul e o verde ) nos servirão de baliza durante toda a discussão.
Foi também na segunda metade desse século, dentro do Romantismo, que as temáticas sobrenaturais atingiram seu esplendor, ou seja, desencadeou-se a produção de textos de terror, vampirismo e licantropia, nos quais seres extramundanos invadiam a nossa realidade, instalando na literatura da época a “estética do Medo”, resultante do eterno conflito entre o real e o imaginário.
Textos como O castelo de Otranto (1764), narrativa gótica de Horace Walpole, Le diable amoreux (1772), de Jacques Cazotte, ( início do gênero fantástico ), O manuscrito encontrado em Saragoza (1814), de Jan Potocki, “A queda da casa de Urcher”, de Edgar Allan Poe e O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann confirmavam a preferência dos leitores por esse tipo de temática, provando que é comum ao homem o encanto pelo desconhecido.
Mas, a que vem tudo isso, se iniciamos falando de cores? Tenhamos calma. A verdade é que durante todo esse tempo de narrativas góticas ( O castelo de Otranto ) e de narrativas de terror e mistério ( Le diable amoreux e “A queda da casa de Urcher” ), alçando como grande expoente o nome de Edgar Allan Poe, uma cor mereceu maior destaque: o preto, além de todas as suas variações adjetivas como escuro, obscuro, negro, ébano etc. uma vez que, via de regra, as narrativas desse tempo ( pertencentes a um Fantástico Tradicional ) valiam-se desse matiz para criar suas ambientações, de um modo a incutir o sentimento de medo tanto nas personagens quanto no leitor. Talvez por isso, um vampiro em Bram Stoker ( 1847 ) não pudesse trajar-se de outra maneira a não ser de preto, envolto em longa e misteriosa capa. A ambientação desses textos era feita sempre com a utilização do preto. No conto “Eleonora”, de Edgar Allan Poe, um dos últimos nomes desse tradicionalismo, podemos encontrar esse procedimento.
Das regiões sombrias, para além das montanhas ( … ) corria lentamente um rio estreito e profundo ( … ) atravessava por fim um escuro desfiladeiro, por entre as colinas mais obscuras ainda do que aquelas onde nascia. ( … ) A sua casca era mosqueada do vívido alternado do ébano e da prata, e mais rica do que qualquer outra coisa, exceto as faces de Eleonora; tanto assim que não fosse o verde brilhante das amplas folhas que se estendiam do seu cimo em longas linhas trêmulas brincando com os Zéfiros, bem poderiam tomar-se por serpentes gigantes da Síria prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.
Na cultura popular e nos estudos em geral sobre a sua simbologia, o preto é a cor das trevas, do mundo inferior e subterrâneo. O preto representa “o que nega a luz do dia” tornando-se um símbolo do mal. É a cor de Anúbis, deus dos mortos no Egito; a cor do demônio na crença popular cristã; as vestes negras simbolizam dor e morte; na superstição cotidiana, animais pretos como gato ou bode representam infortúnio. Alguns escritos clericais da Idade Média revelam no preto o desprezo pelo mundo e pela vida.
Note-se na descrição de Allan Poe a utilização do preto como reforço para a ambientação que se pretende, no mínimo, estranha ou amedrontadora. O que temos é uma postura ascendente que, no fantástico de linha tradicional, nos fará ,enquanto leitores, vítimas do “efeito fantástico” pretendido pelo autor. Essa postura ascendente é reforçada pela utilização de um discurso também propenso ao fantástico analisado em Todorov ( 1970 ) como modalizante3 . Escolasticamente, o fantástico tradicional desenvolvia-se com os textos de Walpole, Cazzote, Potocki, Hoffmann, Maupassant, Gautier e o próprio Allan Poe.
No entanto, se encararmos o sistema literário, e toda sua fenomenologia, como algo em constante evolução, e isso sempre nos pareceu o mais sensato, atentaremos para o fato de que o medo, além de possuir outras manifestações, também pode servir ao gênero fantástico sob outras formas e, principalmente, com ambientação diversa daquela sedimentada ao longo dos séculos. Resumindo, o medo, principalmente em literatura, não é suscitado apenas pela noite. Por conseguinte, o preto, para nós uma marca do fantástico tradicional, poderia dar lugar a outra cor, pois se o diabo for realmente quem diz ser, pode muito bem aparecer ao meio-dia, entre os girassóis.
O que tencionamos dizer é que o próprio gênero Fantástico, fundamentado em Eventos4 sobrenaturais, que tinha o medo como maior prerrogativa, depois de Edgar Allan Poe, ganhou novas feições, talvez novas regras. Essa mudança foi sentida, pois não se encontrava mais nos textos, ao menos com tanta freqüência, a presença de bruxas, sílfides, vampiros e demônios aterrorizantes. O próprio homem passou a ser visto como “um ser extraordinário” em sua complexidade. Alguns críticos como Todorov chegaram a alardear, prematuramente, a “morte do fantástico” uma vez que, depois de A Metamorfose, de Franz Kafka (1883), monstros, castelos, vampiros e outras criaturas noctívagas não se faziam mais tão imponentes na literatura do novo século. Não era a morte de um gênero, mas o surgimento de outro: o Absurdo.
Com um Fantástico “em evolução”, sem castelos e sem vampiros, perdeu-se um pouco a referência da cor preta, ou seja, a ambientação progressiva, ascendente e amedrontadora, começou a diluir-se em meio às novas narrativas.
Surgiram autores que, decididamente, não precisavam mais de vampiros e castelos para atingir o leitor. Textos como “A Casa Tomada”, de Júlio Cortázar, “A usina atrás do morro”, de José J. Veiga e “Emanuel”, de Lygia Fagundes Telles, confirmam isso. Melhor ainda, confirmam a superação e a renovação do modelo de fantástico tradicional de que foi provavelmente um dos últimos representantes o norte-americano Edgar Allan Poe.
Justificando, agora, não apenas a utilização das cores no engendramento do texto, mas sua singular importância na construção do fantástico, destacamos um fragmento do texto “A máscara da morte rubra”, no qual podemos vislumbrar o que viria a acontecer com o Fantástico em um futuro que hoje nos é realidade:
As janelas dispunham de vitrais coloridos de acordo com o tom dominante da peça. Por exemplo, se o aposento era azul, de azul-vivo eram as janelas. E havia branco, verde, púrpura, laranja, roxo e negro. Este era o sétimo. Totalmente coberto de veludo preto. Teto, paredes, tapete. Somente aí nesta sala a cor das janelas não correspondia à das decorações. Os vitrais eram vermelhos, sangue vivo. ( … ) Uma visão fantástica. Na sala negra, porém, o efeito do clarão do braseiro caía sobre as cortinas negras, através dos vidros cor de sangue, dando a tudo uma aparência lívida, de morte. Poucos ousavam penetrar ali. ( E. Allan Poe )
O título desse belíssimo texto de Allan Poe indica, em nossa opinião, os caminhos para uma transição no gênero sobrenatural, pois o que mormente era marcado pelo preto (tomemos como exemplo o romance noir, agora adquire novas tonalidades. Coincidentemente, a cor predominante seria justamente aquela que reforçaria as idéias de dor e morte embutidas no preto. O vermelho, em nossa opinião, jamais seria utilizado por acaso, principalmente pelo que significa.
O vermelho é, como o preto, uma das cores que primeiro adquire um sentido simbólico. Associado muitas vezes ao mundo mágico, o vermelho era a cor da terra e do manto colocados em tempos pré-históricos sobre os mortos para garantir-lhes uma vida além-túmulo. Na Europa antiga, amuletos embrulhados em vermelho serviriam para afastar os demônios. O vermelho representa o amor carnal, a paixão, o erotismo, além de personificar o sangue, a luta, o perigo e a morte. Na Bíblia, é a cor do pecado e da penitência, a cor da grande meretriz da Babilônia (AP 17,4). Na literatura e na sétima arte, geralmente, o vermelho adorna a capa dos vampiros. E como tudo evolui, uma outra tonalidade estava reservada ao sobrenatural…
Lendo este conto iridescente de Allan Poe, passamos a cogitar avidamente: que cor tem o Fantástico hoje? Qual sua nova feição, sua nova simbologia? A resposta vem de dentro desse mesmo texto e, principalmente, dos textos sobrenaturais contemporâneos. Começamos a observar, principalmente, na atualidade, em pleno século XXI, quando o homem em vez de mais techno tornou-se mais místico, que a maioria dos textos que abordam temáticas sobrenaturais, extramundanas, inconcebíveis, oníricas, surrealistas, paranormais etc. têm valorizado sobremaneira o Verde. Mas por qual motivo, ó grande Osíris?!
Em primeiro lugar, numa atitude de provocação semiológica, lembramos que esta cor não é essencialmente primária. O verde nasce, na prática do artista, da fusão do azul (cor da imensidão) com o amarelo (cor da riqueza). Até aí, nenhuma novidade, mas se compreendermos que o azul (cor utilizada no surrealismo de Breton e Dali 5) por seu potencial onírico, ao somar-se com o amarelo (cor da materialidade) gera uma cor de mescla, ou seja, uma cor que oscila entre a matéria ( Real ) e a abstração ( Irreal ), capaz de
simbolizar, metaforicamente, todas aquelas coisas, situações , sentimentos ou seres que habitam o suprassensível, o extramundano, o aparentemente inconcebível. O verde, atualmente, é a cor do Fantástico! Tendo origem na fusão do Amarelo com o Azul, o Verde tem gênese propícia ao Fantástico, à Alteridade, à Ambigüidade. Falemos de sua concepção.
Segundo Manfred Lurker6 (1997), o Amarelo representa a materialidade e, basicamente, a riqueza, esta cor por si só é negativa na perspectiva de todos os seres que aspiram à transcendência divina, à pureza e ao desapego mundano. Utilizada por determinados povos para identificar os proscritos, os hereges e as prostitutas, o amarelo refere-se ainda ao “mau olhado” e à “inveja”, base da depreciação, e outros aspectos negativos.
O Azul é a cor da constância, da transcendência, do desejo infinito, das profundezas obscuras, simbolizadas pelo Céu e o Mar. Para alguns povos é o Mal e a mentira, a ilusão e o sonho. No Alcorão, o azul simboliza o mal por identificar os criminosos. O Azul representa o onírico, o surreal, instando em adornos de deuses, em roupas de santos católicos e até mesmo recobrindo Krishna, que tem a pele interessantemente azul. O azul é a cor da imaterialidade, é a cor do surrealismo.
O Verde, por sua vez, é a cor do “ estar a caminho” segundo os alquimistas, da transição. Na crença popular ocidental o diabo aparece muitas vezes como “O verde “. O verde tem ligação com a morte, pois é uma da cores do estágio de decomposição. Na China, um pedaço de jade ou esmeralda era colocado na boca do morto impedindo-lhe a putrefação. Em certos casos é símbolo de sexualidade, além de referir-se ao sacrifício humano para os astecas.
O Absinto, conhecido popularmente como La Fée Verte ou The Green Fairy, e cientificamente como artemísia absinthium, a bebida preferida dos artistas do final do século XIX, na verdade uma invenção do médico francês Pierre Ordinaire, em 1792, tinha como primeiro objetivo finalidades medicinais, atuar contra males digestivos, mas guarda um poder alucinógeno bastante conhecido.
Na Química, na Teoria dos 5 Elementos7 (antimônio, arsênio, chumbo, mercúrio e tálio), alguns dos compostos mais letais são encontrados na cor verde como o Tálio e o Arsênio, sendo marcados principalmente por conduzirem à morte depois de longo período de delírios, loucuras, sonhos e outros sintomas que combinam com as diversas temáticas do Fantástico. Nevroses famosas estiveram ligadas a estes cinco elementos como as de Mozart, Henrique VIII e Napoleão Bonaparte.
Na Bíblia, (Ap 4,3), temos uma referência ao verde-esmeralda como simbologia apocalíptica. E ainda temos divindades como Osíris, Oxossi, Ratna e Uto, todos com alguma ligação com o verde e com o mal em si. O basilisco 8, por exemplo, monstro mitológico estudado por Borges (1967), tem plumagem amarelada e olhos verdes que matam. O verde é extraordinário!
O francês Louis Vax , em seu A arte e a literatura fantásticas (1974), apresenta um singular estudo sobre a arte fantástica, analisando motivos e pintores, revelando pormenores importantíssimos para quem pensa o fantástico de forma evolutiva, em sua vertente tradicional, moderna ou contemporânea. Em outro momento, ainda que não mergulhe em um estudo detalhado sobre as preferências dos artistas, nos apresenta uma oportuna observação sobre o fantástico e as cores:
Uma imagem não passa de uma imagem, a sua força de feitiço reside numa combinação de formas e de cores. ( … ) A arte totalmente livre do real diverte-se demasiado livremente entre os arabescos e cores. (p.55-58)
Depois de fazer observações sobre os aspectos fantásticos de obras de pintores como Bosch (1450) e Goya ( 1846), Vax, ao descrever uma das pinturas de Chagall (1887), confirma, talvez sem a mesma convicção que nós, a presença do verde na arte fantástica:
Há o encantamento das cores, dos olhos verdes, dos vermelhos, dos violetas ( … ) conhecemos perante as telas de Chagall, o arrepio do fantástico. ( p. 87 e 88 )
Muitas poderiam ser as cores do fantástico, e algumas até que lhe são bem propícias como o vermelho, que representa o sangue no vampirismo, ou o lilás, cor da espiritualidade para alguns. No entanto, a que nos parece mais recorrente, e que melhor se encaixa na poética fantástica (por sua origem mesclada de azul e amarelo) é o verde, sem dúvida, tanto que são incontáveis os textos que apresentam elementos favoráveis ao uso dessa cor como árvores seculares, veredas misteriosas, sereias, olhos etc.
Numa leitura mais atenta podemos perceber que, mesmo no momento do texto de ambientação noir , de penumbra constante, encontramos alguns exemplos nos quais o verde, cor sabidamente mística para os antigos, já era utilizada, timidamente, mas já presente. Em Hoffman, por exemplo, encontramos a descrição do terrível “homem de areia” que tinha seu teor amedrontador destacado, pelas cores, como segue:
No entanto, a mais hedionda das figuras não me teria assustado tanto quanto o tal Copellius. Imagina um homem alto, de ombros largos, com uma cabeça exatamente grande, cara amarelada, quase ocre, sobrancelhas cerdosas e grisalhas, sob as quais brilham olhos penetrantes, verdes como os de um gato, e com um nariz comprido, que lhe cai por cima do lábio superior. Sua boca torta geralmente se contorce em um sorriso maligno, então aparecem duas manchas vermelhas em suas bochechas, e um estranho sibilar lhe sai por entre os dentes cerrados. 9
Ou ainda na “Vênus de Ille” , de Prosper Merimée, na mesma coletânea, quando uma estranha estátua é a principal culpada de um assassinato de cunho passional. Os jovens noivos, depois de concorrida festa, preparam-se para a noite de amor que consumará aquela união.
No entanto, antes do casamento, o noivo havia colocado sua aliança no dedo da estátua que há muito repousava no jardim como importante descoberta arqueológica, uma Vênus esverdeada que parecia estar viva…
Essa expressão de ironia infernal era acentuada talvez pelo contraste de seus olhos de prata engastados e muito brilhantes e a pátina verde-enegrecida que o tempo havia conferido a toda a estátua. 10
Ressalte-se ainda que durante a narrativa o leitor é conduzido ao mundo dos acontecimentos fantásticos, de fatos improváveis, sendo realçada a cada instante a dicotomia realidade/imaginação. Tudo isso avivado pelo teor apavorante da situação final:
A pessoa que estava na cama, ao lado dela, levantou-se e pareceu estender os braços para a frente. Então ela virou a cabeça…. e viu, diz, seu marido ajoelhado junto à cama, a cabeça na altura do travesseiro, entre os braços de uma espécie de gigante esverdeado que o abraçava com força.
Observe-se também a magistral descrição da vampira Clarimonde em “A morte amorosa”, de Gautier, mais uma prova de que as cores, em especial o verde, não são escolhidas a esmo quando o autor tem talento:
Era bastante alta, com um corpo e um porte de deusa; seus cabelos de um louro suave, se separavam no alto da cabeça e escorriam sobre as têmporas como dois rios de ouro; parecia uma rainha com seu diadema; sua fronte de uma brancura azulada e transparente, estendia-se larga e serena sobre as arcadas de dois cenhos quase marrons, singularidade que realçava mais ainda o efeito das pupilas verde-mar de uma vivacidade e um brilho insuportáveis. Que olhos! ( … ) Não sei se a chama que os iluminava vinha do céu ou do inferno, mas com toda certeza vinha de um ou outro. Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; 11
Indo ao que mais interessa, sem nos demorarmos na literatura universal, de onde extrairíamos referências das mais valiosas, partimos para a comprovação de nossa teoria, usando autores também da literatura brasileira, os quais achamos suficientemente ricos para a exemplificação de nossas assertivas.
Considerando então que nossos primeiros textos fantásticos, dentro do tradicionalismo proposto por Cazzote, Hoffman e seus predecessores, tenham surgido com Álvares de Azevedo, com Noite na Taverna (1855), compreendemos por que o autor utilizou-se principalmente do preto e de ambientes soturnos em “Solfieri”.
Assim, relendo textos de um escritor que tinha o hábito de surpreender, encontramos em Machado de Assis, autor de “A Chinela Turca” e “As academias de Sião”, contos de teor sobrenatural, um dos primeiros traços dessa modernidade fantástica. Em “ A chinela turca” , por exemplo, o que temos é uma situação de delírio, um fato que oscila entre o real e o imaginário vivido pelo bacharel Duarte.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul., havia duas letras bordadas a ouro.
Nesse fragmento, já vislumbramos um certo conhecimento que Machado de Assis possuía acerca da cultura oriental, fonte inspiradora de muitos de seus textos como, por exemplo, “A mosca Azul”. Em “A chinela turca”, Machado explorou o potencial do azul ( pele de Krishna, cor divinatória ) e do amarelo, através do ouro ( cor da materialidade ), talvez como equilíbrio entre os pólos da realidade e da imaginação, pois é essa a problemática do conto: o episódio da chinela aconteceu ou foi um sonho?
Na célebre novela “O Alienista” ( hoje tratada como um conto grande ), ainda que não a possamos chamar de “texto fantástico”, Machado de Assis, aventurando-se mais uma vez no tema da alteridade, pois tinha esse hábito, apresenta-nos um visionário, o Dr. Simão Bacamarte, que deseja estudar todos os casos possíveis de loucura ( um tema do fantástico, segundo Vax e Todorov ), de incompatibilidade com a realidade, e sai recolhendo os loucos, trancafiando-os em um sobrado gigantesco denominado “ Casa Verde “ . Coincidência?
Em 1887, um outro autor realista, Oliveira Paiva, em um de seus primeiros contos, também fez uma incursão no sobrenatural com a publicação do texto “O ar do vento, Ave-Maria!”, texto que, em nossa opinião, deve ser entendido como o primeiro conto fantástico da literatura cearense. O mais interessante é que, na hora de descrever seu “espaço fantástico”, utilizou uma técnica semelhante à de Allan Poe em “Eleonora”, o que fez com que não se detivesse apenas no uso do preto, abrindo caminho para uma nova coloração, o verde.
Por entre as palhas do milho – um mar de cobraria esverdeada, com reflexos de armas brancas em mãos de combatentes revoltos – fervilhava um sopro álgido que saía roncando de sob a mata cavernosa das cercanias.
Murilo Rubião, um dos grandes nomes do Fantástico brasileiro, embora o conjunto de sua obra se enquadre melhor no Absurdo, em “O convidado”, também utiliza o verde como reforço da temática trabalhada, no caso, o desconhecido.
Rodaram durante meia hora, passando por residências ricas, de arquitetura requintada ou de mau gosto. Detiveram-se ao deparar um sobrado mal-iluminado e meio escondido por muros altos. ( … ) De fato, na direção deles vinha um homem de terno azul e boina verde. Fez uma reverência exagerada, girando em seguida a maçaneta do carro: – tenha a bondade de descer, cavalheiro.
Interessantemente, a utilização do verde nesse texto poderia até ser questionada principalmente por aparecer uma única vez. Mas, como não aceitar essa intencionalidade se a festa de que trata o conto exige da personagem uma “casaca irlandesa”? A Irlanda, para quem não sabe, é um dos países que mais cultua o ideal dos contos de fadas, povoados por monstros viscosos, duendes e ogros. Para completar, faz do verde uma cor praticamente nacional.
Lygia Fagundes Telles, autora de textos de mistério e, às vezes, fantásticos, nos brinda em sua obra com “Emanuel” e “Antes do baile verde”, dois contos interessantíssimos sobre a psiqué humana. Vejamos um fragmento deste primeiro.
Ninguém está acreditando em mim, ninguém acredita nisso, que tenho um amante e que esse amante tem olhos verdes, um mercedes branco e que se chama Emanuel… ( … ) ás vezes, ele se deita na almofada e fica horas e horas imóvel, ouvindo, os olhos verdes brilhando tanto…
No texto de Lygia, do qual extraímos um fragmento duplo, apresenta-se em todos os sentidos misterioso e ambíguo porque uma das mais importantes razões internas da narrativa é a possibilidade de Emanuel, o misterioso namorado, ter ligações com o gato da protagonista ou ser ele mesmo o próprio gato, justificado também pelos olhos verdes.
Eduardo Campos, mais um contista cearense, em coletânea denominada Os grandes Espantos (1965), nos apresenta um conto, “Os músicos e a moça morta”, no qual alguns músicos, por uma infelicidade, atropelam uma moça, estranhamente, a filha do motorista, que passava por um lugar ermo. Por ocasião do sinistro fato, podemos observar também a utilização bastante propícia dessa cor:
O maestro tentou ainda desviá-lo para o outro lado da estrada, para que não deparasse a vítima – amortalhada em seu próprio vestido verde, de tule – mas todo o gesto, nesse sentido, restou-lhe inútil.
Nesse fragmento, o verde também parece casual, mas por qual motivo teríamos a cor verde relacionada ao vocábulo amortalhada? Uma “mortalha verde” não nos parece casual quando sabemos que o verde também é a “cor da morte”, da decomposição, o que faz com que se entenda também o “líquido esverdeado” que os músicos vomitam minutos antes do espetáculo, embora se saiba que a bílis é dessa cor.
Outro autor cearense, Herman Lima, também enveredou pelas temáticas sobrenaturais. Em Tigipió (1975), por exemplo, encontramos a história de um jovem que, sem poder desfrutar da noiva imediatamente, como queria, viu-se, certa vez, atormentado por “ondinas” belíssimas que lhe atraíam para o sexo, a luxúria, mais um dos temas fortes do fantástico.
Punham-se de pé, de supino, coxas ligadas, braços abertos, imponderáveis rondando numa farândula opulenta de estátuas de esmeralda, indo e vindo no ar, passeando contra a luz suas verdes nudezes transparentes . Rolavam , ainda, na vaga e chegavam após, soltas, empinadas, o ventre em arco, os seios em riste, e acercavam o marujo, desferindo coplas ditirâmbicas, e ofertando amor.
O também cearense José Alcides Pinto, cognominado “ poeta maldito “, não achando suficiente a presença do mal no mundo, centraliza-o no Vale do Acaraú e lança a sua “trilogia da maldição”, donde se destaca o romance Os verdes abutres da colina (1997) , uma aula sobre a iminência e a constância do diabo ao nosso redor. O fantástico avança, pintado de verde:
Do lado do poente, das abas da serra do Mucuripe, partiram igualmente os verdes abutres da colina precedidos de sua grande ninhada, com seu crocitar já conhecido da comunidade do povoado, rugidos ferozes como jamais se viu.
Nessa perspectiva contemporânea, em lustrosa e esverdeada coletânea, organizada por Bráulio Tavares, encontramos textos como “O caminho de Poço Verde”, de Rubens Figueiredo, que também apresenta a utilização dessa cor como realce do fantástico:
No entanto, tudo ainda corria bem quando pela primeira vez ela ouviu falar de Poço Verde. Rochas, cascatas, matas, gente simples, animais. Sobretudo um poço de águas quentes que fumegavam no meio da folhagem espessa. Descreveram o lugar de tal modo, povoaram-no de tantas histórias que ela já não admitia voltar para casa sem ter ido a Poço Verde. O estranho é que ninguém soubesse direito como se chegava lá.
Note-se que o lugar vai-se definindo, num crescendo, a partir da perspectiva do mistério, do desconhecimento proposto pela temática da alteridade, do que pode existir de bom ou mau em Poço Verde.
Chico Buarque de Holanda, uma grata surpresa da literatura contemporânea, mesmo que alguns digam que “como ficcionista ele é um ótimo compositor”, em Estorvo, texto urbano fundamentado na neurose, no onírico, na dicotomia realidade x imaginação, não poderia ficar ao largo de nossas observações. Vejamos um fragmento ilustrativo extraído do final do livro, quando a personagem, apropriadamente incógnita, depois de esfaqueada, caminha para a morte:
Dou sorte de encontrar um banco vazio atrás de um padre preto e gordo com olhos esbugalhados, e à frente de um indivíduo esverdeado, que dorme com a face direita deformada contra o vidro.
Este romance de Chico Buarque nos faz pensar em como anda o fantástico na contemporaneidade, pois percebemos também que a narrativa não precisa obrigatoriamente ser enquadrada no gênero fantástico, mas valer-se de momentos em que o fantástico, gerado a partir da situação sobrenatural, possa existir ajudando a compor o texto.
O fantástico, assim como o verde, não precisa ser o elemento mais importante em um romance ou conto, pode ser apenas um recurso para ajudar a realizá-lo segundo as intenções do autor. Nesse momento de Estorvo, o verde é utilizado para representar a idéia de morte, pois a personagem secundária que, ao final, encontra-se com o rosto encostado no vidro do ônibus, vem a ser a mesma do início do romance.
Nem tudo que é verde é sobrenatural, mas o sobrenatural, atualmente, em nossa opinião, tem ligações com o verde. A afirmação pode soar leviana, mas um estudo , mesmo superficial, a respeito dessa cor e de sua ocorrência na literatura de ordem sobrenatural no mundo ou simplesmente no Brasil, sem falar em outras expressões artísticas, comprova que tal afirmativa, como a própria literatura, ainda que não seja verdadeira, faz muito, muito sentido.
Contrariando o sarcasmo de Vax (1974) acerca do “fantástico cinematográfico”, um breve olhar sobre a “sétima arte”, em textos que também tratam do sobrenatural, atestará que nosso estudo ganha cada vez mais consistência.
Em filmes como O Exorcista, Matrix, O senhor dos anéis, Stigmata, O Invasor, Hulk, entre outros, o que temos são eventos extraordinários de ordem divinatória, suprafísica ou científica, como é o caso de Matrix, nos quais o verde é utilizado repetidas vezes, como ambientação, num fantástico cada vez mais eclético, principalmente para reforçar essas temáticas.
Nosso estudo acaba por demarcar, e cremos que pela primeira vez, a estreita relação dessa cor com o gênero fantástico, em sua perspectiva mais contemporânea, aquela em que a escuridão e as criaturas notívagas não são mais necessárias.
O mais interessante é que esse procedimento (a utilização do verde na literatura, na pintura e no cinema ) afigura-se quase como um postulado, pois muitos o seguem de forma “escolástica”, mesmo que nem todos tenham a devida consciência da cor que escolhem para esse projeto na busca pelo efeito fantástico.
Incrivelmente, são incontáveis os textos que se valem do verde na construção dos eventos sobrenaturais, assim como são muitas as narrativas que se iniciam com uma epígrafe bíblica, e poucos artistas compreendem o sentido disso, tomando a prática como um modismo. Também são muitos os livros de caráter sobrenatural que possuem ilustrações e capa verde, mas, ao que parece, poucos têm ciência do que realmente isso significa.
De qualquer forma, o que era apenas uma praxis, voluntária ou não, da poética do sobrenatural, agora se fundamenta em nossas palavras, ganhando um caráter mais técnico. Usai o verde criteriosamente, artistas, ele tem poderes sobrenaturais! E aquele que ousar refutar esta constatação, precisará de muita coragem, pois enfrentará, além de mim e todas as minhas circunstâncias, um exército inteiro que tratará de nos defender; criaturas como o Hulk, a Kuka, o Peter Pan, o Duende Verde, o Máscara, todos os ogros da Irlanda e da Hungria, e até mesmo os marcianos, insolitamente verdes.
Notas
1 Professor da Universidade Federal do Ceará(UFC) e Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB.
2 Primeiros e mais importantes estudiosos de Semântica e Semiologia.
3 TODOROV, Tzvetan. Estruturalismo e Poética. Trad. de José Paulo Paes, São Paulo, Cultrix, 1970. p. 37.
4 A categoria Evento, instituída por nós na poética do Fantástico, representa o momento exato da irrupção do sobrenatural na narrativa, o momento em que o ser de uma outra realidade subverte a legalidade cotidiana com sua presença.
5 No quadro “As tentações de Santo Antão”, na perspectiva de Salvador Dali (1904), o azul do céu, representando o onírico, predomina como afirmação do Inconsciente.
6 Manfred Lurker faz um estudo das mais diversas simbologias dedicando especial atenção às cores.
7 EMSLEY, John. The elements of murder – A history of poison. Oxford University Press, England, 2005.
8 Jorge Luís Borges, em um estudo catalográfico de monstros que habitam o “imaginário” popular de todo o mundo, ressalta o basilisco como um dos mais recorrentes.
9 CALVINO, Ítalo. Os melhores contos fantásticos do século XIX.São Paulo, Martins Fontes, 2004.p.53
10. CALVINO, Ítalo. Os melhores contos fantásticos do século XIX.São Paulo, Martins Fontes, 2004.p.250 e 264.
11. CALVINO, Ítalo. Os melhores contos fantásticos do século XIX.São Paulo, Martins Fontes, 2004.p.216.
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