Monstros Residuais nas Narrativas Cearense:
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo a reflexão sobre monstros ou temas que, ao longo dos tempos, migram ou permanecem nas narrativas orais da literatura fantástica cearense. Utilizando os conceitos de Fantástico (Estranho e Maravilhoso) de Todorov (1992), de Residualidade, de Pontes (1999) e as noções abalizadas de Cultura Popular a partir de Hall (2011) e Cascudo (1944 ) analisa-se de que forma alguns monstros e temas fantásticos permanecem, ao longo dos tempos, em lendas, contos e causos da literatura sobrenatural do Ceará.
Considerações iniciais
Tratar de narrativas orais, mesmo nos campos da Literatura Fantástica e da Residualidade Literária, é tratar da própria Cultura Popular. Neste quesito, adentramos em uma farta polêmica, pois o conceito de Cultura Popular é notadamente raso e fugidio. Trata-se de um conjunto de práticas que se realizam nos interstícios da cultura dominante recusando-a, aceitando-a ou adaptando-se a ela. Por isso é natural entender a Cultura Popular também como um espaço de resistência e inversamente de conformismo.
Para Hall (2011) existe uma luta ou dialética cultural, um tipo de campo de batalha em que não se obtém vitórias definitivas, mas avanços estratégico inclusive em termos conceituais como se pretende ao unir aqui Oralidade, Residualidade, Cristalização e Fantástico no tocante a monstros que sempre existiram e que continuam existindo como um tipo de permanência no sentido da oralidade e da Cultura Popular.
A investigação se dá no sentido de identificar, por exemplo, casos em que monstros, às vezes milenares, existentes na memória de uma comunidade, no caso específico dos cearenses, em sua literatura de cunho oral, como um tipo de resíduo que atesta a permanência e inclusive a cristalização de determinados monstros no seio de uma literatura que se alimenta de fatos sobrenaturais e que caracterizam a Literatura Fantástica.
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1 Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB. Mestre em Literatura Brasileira pela UFC. Criador do GRELF (Grupo de Estudos de Literatura Fantástica) e Diretor da Revista Brasileira de Literatura Fantástica.
1 – No campo do “disse-me-disse”
A literatura da oralidade, é sempre bom enfatizar isto, é, essencialmente, uma literatura que tem como ferramenta a voz. Exatamente por isso a literatura, da forma como se conhece, deixa de ser captada pelo seu sentido primeiro de littera (letra), configurando tudo o que foi escrito, e passa a ser compreendida lato sensu também como falas, murmúrio, casos, causos e, portanto, algo inerente à cultura popular.
A oralidade ou literatura oral passa a figurar como uma espécie de arte do cotidiano, ou seja, apresentada por meio de diferentes manifestações ou ocorrências da vida diária, englobando as contações de histórias, os causos, as narrativas de feitos comuns ou sobrenaturais que afloram por influxo da memória nas mais diversas situações e finalidades.
A bem da verdade, o grande problema de se trabalhar a literatura com suas manifestações orais reside na escolha de uma abordagem um tanto equivocada, a saber, conferir ao texto oral os mesmos significados e/ou interpretações que se confere ao escrito, aos contos e romances, por exemplo. Não que falemos de uma impossibilidade, mas pelo fato de haver algumas variantes formais e temáticas específicas da tradição oral.
Acrescente-se a esta perspectiva os modos distintos de veiculação desta literatura oral, das suas formas de composição e inclusive de transmissão ao longo dos tempos (o cordel, o romanceiro etc), algo que normalmente é ignorado. Na verdade, não é o caso apenas, de diferenciação estre escrita e oralidade, mas de consideração de todos ou ao menos dos mais importantes aspectos da literatura oral.
A palavra transmitida pela voz, principalmente na perspectiva do sobrenatural tem um pouco mais que a mera produção de sentido, pois aventa diferentes modos pelos quais o texto, a narração, se ordena ou reordena-se a partir inclusive de uma simples predisposição para ouvir, o que causa efeito distinto do que ocorre no texto escrito.
É preciso, então, que as manifestações do texto oral, no que concerne à configuração inclusive de um bestiário, por exemplo, como nos propõe Borges no seu Livro dos seres imaginários, sejam consideradas a partir dos vários conceitos que as norteiam ( tradição, memória etc) com o fito de compreender o surgimento das histórias ou do próprio monstro nela veiculado, sua reutilização (e veremos que isto ocorre) e logicamente sua permanência como um resíduo na tradição oral e de que forma estes conhecimentos propostos por Pontes (2006) somam-se a uma teoria da literatura fantástica. Sobre este dinamismo que acentua também uma permanência são pertinentes a palavras de Sylvia Molloy (2000) tradutora e prefaciadora de Borges.
O livro dos seres imaginários é uma lúcida reflexão sobre a literatura como fato temporal e móvel. Um catálogo de seres imaginários fixos – um repertório estável de monstros (…). O que o atrai (a Borges) é a inevitável transformação que trazem às imaginações primeiras, tão vistosas que parecem definitivas às leituras sucessivas, as novas versões, as digressões, as erratas. (Borges, 2000, p. 10)
Ao que se percebe, por meio da transmissão oral, os textos ou eventos sobrenaturais evocam de certa forma uma memória do futuro, pois a rememoração e a interpretação são garantidas pela transmissão, que na técnica da oralidade privilegia o inexato, o dúbio, o subjetivo, que passa a funcionar como elemento gerador de uma reconstrução, com diferentes versões (sempre se referindo ou remetendo a uma forma identificada como original) que passam a ser incorporadas na tradição.
Este processo permite o ressurgimento de imagens (e logicamente de monstros) que, por sua natureza, teimam em permanecer, sempre, num processo de reconstrução das próprias histórias ouvidas numa perspectiva espaço-temporal daí podermos inclusive falar sobre a migração de temas e dos próprios monstros de uma sociedade a outra, de uma narrativa a outra, de tal forma que nos textos da tradição oral, a pessoa que conta não seja apenas um reprodutor, mas por vezes, ator (vivenciando crédula ou incredulamente os fatos) daí tornar-se também o autor de uma nova versão daquela história e, naturalmente, também um tipo de comentador dos fatos narrados.
Intimamente ligados a um processo que pressupõe dinamismo e permanência, estes monstros de que nos falam C. S. Lewis, Borges, Todorov, H. P. Lovecraft e tantos outros são, na prática, criaturas do tempo, monstros sucessivos, ressaltados ou esquecidos alguns de acordo com cada época e com cada necessidade humana.
2 – O Fantástico na Literatura Oral
Para Tzvetan Todorov (1992) o Fantástico se define a partir dos efeitos de incerteza e de hesitação provocados no leitor em face de um acontecimento sobrenatural, que ora denominamos Evento. Segundo o teórico búlgaro, a hesitação é a primeira condição para o fantástico, e adverte ainda que tal exigência nem sempre é representada dentro da narrativa, mas que a maior parte das narrativas se submetem a ela havendo, assim, a permanência de uma ambiguidade, o que será, segundo ele, importantíssimo para a classificação de um texto como pertencente ao fantástico puro.
A ambiguidade da situação faz com que se abra uma dualidade intrigante de possibilidades no mundo cotidiano, a priori um mundo real, mas que nos proporciona coisas inerentes a uma outra realidade, regidas por sua vez por leis que não são as nossas. O leitor, o ouvinte fica em estado de dúvida. Note-se que esta característica acentua a importância da enunciação, ou seja, do ato de fala na construção das imagens que permeiam o texto sobrenatural, seja ele escrito ou pertencente à oralidade.
A dúvida quanto ao que foi lido ou escutado configura uma dupla hesitação, pois também depende do papel funcional do leitor/ouvinte, e se manifesta quando não se sabe ao certo se a situação apresentada pertence ao mundo real ou advém de algo impróprio e totalmente desconhecido pela realidade sensível. Vejamos o que ele diz exatamente sobre isso:
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos , sem diabos, sílfides, nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis. Ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 1992, p. 30).
Percebemos, então, que este binarismo, a presença de dois mundos, nas narrativas orais ou escritas, são possuidores cada um de suas leis, e povoados por seres que lhes são inerentes, muito importante para a consolidação do próprio fantástico, pois apresenta um fato que pode ser interpretado de duas maneiras: natural (por meio de uma causalidade específica) ou sobrenatural (uma anticausalidade), em um espaço dúbio ou ambivalente que obrigará o leitor a pensar minimamente em duas possibilidades, em duas interpretações para aquele fato.
O que torna a teoria mais intrigante é que, também nesse caso, não devemos optar por uma ou outra resposta, ou seja, ao escolhermos uma solução natural (coincidência) ou sobrenatural (mágica) afastamo-nos do Fantástico, para entrarmos em outra perspectiva, pois segundo Todorov (1992), a escolha entre uma saída ou outra acaba inserindo o texto ou no Maravilhoso, em que todas as coisas são possíveis, ou no Estranho, um tipo de “sobrenatural explicado”.
Em última instância, para sairmos do labirinto das definições, usando uma expressão borgiana, devemos entender que primeiramente existe o fantástico, caracterizado pela configuração do Evento, ou seja, pelo momento exato da irrupção do sobrenatural na narrativa, de causalidade imediatamente sobrenatural que pode provocar a hesitação seja no leitor de um conto seja no ouvinte de um causo.
Nessa hora, para uma visão contemporânea da literatura sobrenatural, como propuseram Lovecraft (1973) e Lachmann (2002), todas as narrativas, orais ou escritas, que apresentam um evento de natureza insólita são igualmente fantásticas, o que nos dá o direito de utilizar, em substituição à noção de gênero, a expressão Literatura Fantástica (LF) para todos os textos dessa natureza, inclusive quanto aos monstros que aqui serão apresentados.
3 – Monstros residuais ou cristalizados
A Teoria da Residualidade, do professor Roberto Pontes, da Universidade Federal do Ceará, caracteriza-se principalmente por “aquilo que resta, que remanesce, de um tempo a outro, podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou distante”, ao que se permite dizer que o resíduo se configura como tudo aquilo que remanesce de uma cultura antiga em uma nova cultura, porém de forma cristalizada, ou seja, transformada, modificada ou adaptada.
No que tange a Literatura Fantástica, especificamente na literatura oral do Ceará, tema do qual já tratamos por ocasião do I ECELF (Encontro Cearense de Literatura Fantástica) na UFC, e os seres inerentes a este tipo de literatura, seja ela escrita ou ágrafa, a literatura oral mesmo, convém dizer que a maioria dos monstros apresentados desde os tempos mais antigos, nas mais diversas culturas, daí inclusive a possibilidade de hibridização cultural, encontram alguma forma de permanecer, de continuar existindo ou sendo reutilizados ao longo dos tempos, oralmente, exatamente como eram ou modificados por algum processo de cristalização. Podem ser citados, então, como alguns monstros residuais da oralidade cearense urbana ou rural os seguintes
- A Moça da mata
Muito comum nas narrativas orais do sertão, desde o século XVIII, a “moça da mata” é uma bela jovem encontrada nas matas, normalmente penteando os cabelos sobre uma pedra, um tipo de sílfide ou demônio da floresta já citado pelo historiador e romancista português Alexandre Herculano em seu texto “A dama Pé de Cabra”. Ocorre em regiões de mata atlântica, em regiões de serras, por exemplo, na serra de Maranguape. .
- A Mulher serpente
Mulher com a maldição ou o dom de metamorfosear-se em serpente. Narrativa muito encontradiça no sertão do Ceará, principalmente da mulher que vira serpente para mamar no peito das mães no lugar dos recém-nascidos. Há uma relação de permanência com Lilith, monstro citado por Hesíodo e Borges em seu bestiário. Há um registro na cidade de Sobral em lenda antiga sobre a Lagoa da Fazenda que fica localizada próximo à Universidade Vale do Acaraú-UVA.
- O Lobisomem
O licantropo (do grego λυκάνθρωπος) é um ser lendário, com origem na mitologia grega, segundo as quais, um homem pode se transformar em lobo ou em algo semelhante a um lobo em noites de lua cheia, só voltando à forma humana ao amanhecer. Trata-se de história muito comum na Europa do século XVI e que no sertão brasileiro mantém as mesmas prerrogativas como um resíduo perfeito. Talvez um dos únicos que não sofra cristalização ou atualização. Interessantemente, é um monstro atemporal e encontradiço em lendas e causos de todas áreas do Brasil. No Ceará não seria diferente havendo, inclusive, sua versão urbana, como o “Lobisomem da RFFSA”, monstro que habita os vagões abandonados da Praça da Estação.
- A Criança perdida
Oriundo dos contos populares de Grimm e Perrault, século XVIII, é sempre uma criança maltrapilha e faminta encontrada em estradas e em florestas pedindo ajuda e procurando pela mãe. Sofre alterações na oralidade brasileira e cearense chegando a confundir-se com a caipora. Sua ocorrência, em solo cearense, dá-se nas regiões de mata atlântica onde ainda é possível observar pequenas florestas como nas serras da Meruoca e da Ibiapaba.
- A Mulher que virou porca
Monstro referenciado em região praiana do Ceará, vale do Acaraú, conta de uma mulher que nas sextas-feiras virava porca e passava atacar os homens para possuí-los em orgias que os desfalecia ou matava. Há quem diga que isso ocorreu porque a mulher quando jovem desrespeitara a mãe e fora por esta amaldiçoada. Tal monstro tem incidência primeiramente na Amazônia e migra para o sertão cearense na volta dos trabalhadores (os cassacos) que foram ao Norte extrair borracha.
- Mula-sem-cabeça
Trata-se de uma burrinha de cor preta ou marrom, que em lugar da cabeça apresenta uma tocha de fogo. Possui ferraduras de aço ou prata de relinchar estridente que de muito longe pode ser ouvida. É comum também ouvir o animal soluçar como um ser humano, pois dizem na tradição oral que a mula sem cabeça é na verdade uma mulher que, por ser mante de um padre, torna-se este medonho animal. Monstro retratado nos contos de Oliveira Paiva em sua coletânea publicada pela ACL em 1976.
- A Bailarina azul
Lenda urbana registrada pelo historiador Airton de Farias sobre uma moça, uma jovem bailarina, vestida de azul que aparecia no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, e dançava sozinha no palco em horas não muito convencionais e chegando a misturar-se junto ao público em algumas ocasiões gerando dúvida se de fato era uma pessoa real ou não. Na prática é como uma versão feminina do Fantasma da Ópera.
- O Gritador
História que reproduz o mito alemão do El Korning, cantada em uma balada de Goethe, e que no sertão da Ibiapaba tem a ver com o dia em que um pai, matando um porco para uma festa, sem querer, acertou o filho com um machado ou mão de pilão. Depois disso, saiu correndo pedindo ajuda para salvar a criança, mas inutilmente. Nas histórias é apenas a voz de um homem que passa gritando por ajuda em horas grandes (três, seis e doze) em locais ermos.
- A Hilux Preta
Lenda urbana que de forma mais fantástica ainda acaba se convertendo em um monstro (vide a sua personificação no imaginário popular) trata-se de um carro preto (permanência do gótico na literatura) que por volta de 2006 passou a terrorizar os moradores de Fortaleza, principalmente mulheres e crianças, pois seus ocupantes infernais e incógnitos sequestravam as pessoas e lhes roubavam os órgãos.
Estes são apenas alguns dos tantos monstros anotados na literatura oral do Ceará. Desses muitos ainda podem ser citados A perna cabeluda, A mulher de algodão, a Loira do banheiro etc. monstros que se mantém na tradição oral, na literatura cearense, mas que não são de hoje, mas de outras épocas e inclusive de outros países, de outros povos ou culturas que foram transplantados para cá e que, de alguma forma, vão permanecendo na memória oral do Ceará.
A parte que mais nos interessa nesse estudo é exatamente a forma como estes monstros se tornam atemporais e continuam a existir no imaginário de algumas pessoas, pois quando se pensa que tais seres deixaram de existir eles retornam atualizados ou cristalizados, vide o conceito de Pontes de cristalização, como se recebessem uma nova roupagem, uma releitura ou adaptação. Basta lembrar que nos anos 80 a Hilux preta já fora um Opala preto, o que não estranharia pensar que no século XIX tenha existido, ironicamente, paras bandas do Passeio Público, um cabriolet preto em que dentro se podia ouvir o riso do próprio Diabo, interessantemente um outro caso patente de residualidade, mas esta já é outra história…
REFERÊNCIAS
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