As mãos e o Destino em Titanic
Tudo que sei é que nunca mais sentarei numa poltrona de cinema como sentava antes, e como sentam ainda muitas pessoas que juram eterno amor à Sétima Arte. Longe de mim! Longe mesmo essa coisa de entrar, comprar refrigerante e pipoca, procurar o melhor lugar e, literalmente, me esparramar na cadeira colocando os pés na cabeça do infeliz que está sentado à minha frente. Afinal de contas, esse é o comportamento da maioria das pessoas que vai ao cinema hoje em dia. O que vão fazer lá? Ver o filme? Respondem sem titubear. No entanto, eu digo não! Não quero mais “ver” o filme. Quero entendê-lo, saber o que se passa, ler as “entrelinhas”, buscar o cerne do roteiro dentro das intenções e do charme inteligente e caprichoso dos bons ( eu disse “dos bons”) diretores. Falo assim por que para mim, ver um filme é como ler Machado de Assis, e fazer uma viagem em busca de “algo mais” que ele sempre trata com a maior das sutilezas, tanto que para conseguir identificá-lo é preciso no mínimo gozar de um privilégio que poucos possuem sensibilidade. Para que me entendam, trago de volta, porque já foi publicada uma vez, a minha análise do filme Titanic à luz da semiologia proposta pelo cinema.
Recordista em público e renda, Titanic foi, na época, o que se podia chamar de “unanimidade”, e se “ Toda unanimidade é burra” como bem dizia o louco do Nelson Rodrigues, então eu não sei mais o que é bom. O que temos ali é uma belíssima história de amor, muito bem contada, diga-se de passagem. Se os efeitos especiais não agradaram a alguns e se o roteiro, porventura, exibe falhas (há quem o diga) nada disso me importa. Não fui lá só pra “ver o filme”. Fui também para ouvi-lo. A trilha sonora é impecável, unindo-se primorosamente à imagem, causando um certo torpor. Como recusar-me a ouvir uma música que não só tocam, como também cantam ao meu redor em péssimo inglês logicamente – desde o primeiro dia de exibição e sabe-se lá quando é que vai sair de cartaz!? Não! Definitivamente este não é um filme comum. Justificam-me as palavras o número de indicações ao “Oscar” e as cifras alcançadas em tão pouco tempo (mais de um bilhão de Dólares em bilheteria).
Vi o filme, ouvi a música e li – obrigado Heitor Capuzzo – as entrelinhas muito bem engendradas por James Cameron, o “responsável” por esta pérola do cinema atual. A história contada no filme afoga-se em verossimilhança, sem contudo afundar no triste mar dos documentários. Será esse o grande mérito? Pois bem, voltando a história…Num momento de grande importância para as pessoas da época, a viagem a bordo do Titanic é um estado de graça, a máxima das glórias- sem criticar o “nó” social imediatamente perceptível – onde tudo poderá acontecer. Dentro desse ambiente arma-se a trama, a “Love story” entre a falsa princesa e o plebeu que, para ficar definitivamente com sua amada, precisa vencer o rival. É essa basicamente a história. Há porém u, pouco mais a se ver, algo que apesar de ser oculto é facilmente identificado pelos olhos do bom – e sensível? – observador para qual o filme e um objeto de prazer e estudo.
Ilustrando todo o conjunto e funcionando como um complemento da idéia secundária, o naufrágio em si (uma vez que a principal é o amor), percebi a sutileza de Cameron em colocar pequenas referências que ajudam ou, no mínimo, reforçam perfeitamente tudo o que é visualizado.Percebi em primeiro lugar o forte mas necessário desejo do diretor em trabalhar o quesito Destino, valorizando para isso a figura das mãos. Por que a mão? Porque é justamente nela que se encontra “traçado” o destino das pessoas ou das personagens, falando mais especificamente do filme. Note-se que o “mocinho” é um desenhista que tem verdadeira paixão por mãos – isso o ator deixa bem claro em determinadas falas. A protagonista Rose (que quer dizer “rosa” e que coincidentemente é colhida por mãos) em seu estado de velhice surge no filme moldando um jarro em argila com suas próprias mãos. De maneira geral, as mãos são o ponto de apoio do diretor para realçar tudo o que diz ou apenas “intenciona” dizer.Então vamos por partes: a primeira tomada é a multidão que acena(mãos) para aqueles que partem. Jack, o “mocinho” ganha numa partida de pôquer (mãos, sorte, azar, destino) as passagens que mudarão sua vida. A primeira coisa que vemos de Rose é a sua mão muito bonita por sinal. Um dos marinheiros, aquele que sente “cheiro” de gelo, dá o aviso da presença do fatídico e inevitável “Ice-berg” tocando o sino com a mão esquerda. O oficial que no auge de seu desespero suicida-se, o faz com a mão esquerda. O noivo, figura asquerosa e antagônica, é canhoto.
Agora eu pergunto: por que esse predomínio da mão esquerda em relação a tomada de atitudes (ação)? Coincidência? Não! Propósito, Cameron, provavelmente, segui um preceito mítico de antagonismo natural, onde a direita é o bem e a ordem, sendo a esquerda seu contrário. A mão esquerda toma as atitudes e predomina até o momento em que ocorre o naufrágio. Lembre-se que o guarda-marinha, que procura sobreviventes, entre os quais Rose, levam uma lanterna na mão esquerda, mas, depois quando está quase desistindo, escuta o som do apito e volta, é na mão direita que a lanterna agora está, e é também na mesma mão que encontra-se a chama da liberdade (Positivismo) ostentada pela estátua americana que praticamente fecha o filme como se indicasse a quase resolução da trama. Não esqueçamos também do “codex”, ou seja, o livro que contém as leis que regem o destino do povo americano, e que repousa em sua mão esquerda, é lógico!
Não, não vejo chifre em cabeça de cavalo! Eu vejo com os olhos e com os ouvidos, e com a cabeça, o que é melhor ainda. Afora tudo isso, percebi também o realce dado pelo diretor a Sorte ou Azar daqueles que viajavam a bordo do Titanic. Logo que ganham as passagens, Jack e seu malfadado amigo dizem: “Nós somos os dois sacanas mais sortudos do mundo!”. Isso não valeria nada se antes eles não tivessem passado por baixo de uma escada e entrado no navio literalmente com o pé esquerdo. Sim, vi muitas coisas e creio que com mais atenção teria visto mais ainda. Percebi o brilhantismo de Cameron atravessando janelas como Orson Welles e valendo-se da íris / ótica de Rose à moda Hitcock. Vi traços de Einsestein e até a presença quase forçada de uma garotinha destaque que me lembrou muito o já conhecido “Lista de Shindller”. É justamente como eu digo, meus amigos, não basta sentar e assistir. É preciso também entender, saber do que se trata e gostar mais ainda de cinema justamente por isso.
Dr. Vicente Jr. Matéria do Jornal O Estado