Bird Box

Bird Box: uma caixa sem surpresas

Diga-se logo o óbvio: o livro é melhor. O filme em si, produto razoável, bem vendido, com muita propaganda, é decididamente fraco e sustenta-se em um nome de peso: Sandra Bullock, impagável. Partindo deste princípio, discutirei aqui apenas o estranho, o terrificante, o imensurável, o Fantástico, o terror apenas como uma possibilidade. O resto é mesmice. A repetição está nítida já no formato da própria narrativa, vide seus flashes sem muita função.

Vamos então ao que interessa: AS CRIATURAS. O filme nos surge espacialmente como um walking dead, mas sem os zumbis. Talvez isso tenha feito ficar interessante. Confirma-se, pois, como um texto apocalíptico, mas não pós-apocalíptico, já que o mundo ainda não acabou; o momento da narrativa é o da própria destruição ou “purificação”, como dizem algumas personagens. Observa-se, então, a primeira e mais plausível possibilidade de desvendamento das criaturas: são anjos, anjos destruidores normalmente mandados à Terra quando da necessidade de purificação do gênero humano.

Note-se que não se trata de uso de arma química ou biológica, não é um caso de gás venenoso ou mutante etc. O que temos são seres, criaturas estranhas que se manifestam por meio de sussurros (costumam dizer o nome das pessoas) e pelo vento nas árvores, nos arbustos e ao redor. Ao mesmo tempo, estes seres são louvados como lindos, divinos etc. Mal dirigido, ou seja, tomou-se o caminho mais fácil, a técnica do flash back realmente prejudicou o entendimento do leith motive do autor inclusive a empatia pelas personagens, excetuando-se claro a própria Malorie e o heroico Tom. O resto é puro cliché: um tarado, um escritor frustrado, um cético etc.

Essa ideia do fim pela mão de anjos ganha força quando, sem nenhuma referência a Saramago (Ensaio sobre a cegueira), a visão das criaturas leva à morte. Aqui se desmonta toda essa conversa de ser este um filme sobre os “desespero da sociedade contemporânea vítima da depressão…que leva ao suicídio” blá blá blá. O filme e o livro não são sobre isso. Não há um viés teológico no sentido de doutrinação ou religiosidade. Não. Mas é apocalipse mesmo.

O ser humano parece merecer por vários motivos seu extermínio. Isso é nítido no tema da maternidade não aceita por Malorie e até na sua indiferença quanto aos filhos (proposição edênica do mito de Adão e Eva) como o fato de terem nome ou não, sendo chamados apenas de boy e girl. É possível serem ETs? Sim, mas para isso é necessário transformar o filme em série (não seria má ideia) e inventar essa lógica a partir dos desenhos delirantes de um dos loucos. Outro reforço à teoria de anjos x homens é a questão dos olhos. Em vários evangelhos é bastante recorrente a ideia de não contemplar Deus ou sua face ou mesmo seus mensageiros de luz. Existem anjos de vários tipos, mas destacam-se dois: os de misericórdia (o anjo que impede Abraão de sacrificar seu filho), de destruição (os anjos varões que aniquilam populações e cidades inteiras como Jerusalém, Sodoma e Gomorra).

Os olhos não são apenas as janelas da alma, mas os elementos incitadores ao erro (desejar, invejar, desobedecer, odiar etc.) Tê-los ou não é algo bastante simbólico em termos literários, filosóficos, psicanalíticos ou mesmo teológicos, como o que aconteceu com Saulo no caminho para Damasco, uma cegueira que posteriormente leva à morte simbólica e à purificação para o exercício de uma nova vida. Nessa perspectiva de enxergar ou não, compreende-se que é exatamente por isso que há dois grupos de imunes: os cegos de nascença e os loucos. Aqueles por não poderem ver a ira de Deus materializada em suas criaturas divinas; estas por possuírem um tipo de cegueira pessoal que é a (des)razão. Exatamente por isso, os loucos são partidários da “limpeza”, pois embora possam enxergar, só conseguem absorver a ideologia da purificação, ou seja, instrumentalizam-se, cegam para a torpeza, para o crime porque assim já é o seu natural no mundo e sua (in) existência enquanto loucos. Em resumo, com a mesma pegada de terror psicológico do filme Os pássaros (1963), do mestre Alfred Hitchcock, a maior influência na verdade para Bird Box é o filme Legião (2010), de Scott Stewart, também apocalíptico em que mais uma vez o Criador, decepcionado, manda anjos exterminarem a raça humana. Estamos tratando, então, mesmo com criaturas não nominadas, talvez seja este o grande mérito do autor, de um dos temas mais antigos na Literatura e no Cinema.

Por isso defendemos que o livro Bird Box, de Josh Mallerman (2014) deve mesmo ser lido. Em última análise, é possível fazer relações pertinentes entre o filme dirigido por Susanne Bier e outros tantos temas da atualidade: o protagonismo feminino, o tema da maternidade, a questão humana, pouco mística e inclusiva dos cegos, e, muito distante uma simbologia em relação às vendas que constituem um mecanismo de cegueira necessária, ou proposital, segundo a vontade de cada um como já fazemos. Fechamos os olhos para o outro, para sua dor, para a sua fome, para a suas necessidades, para as crianças e suas urgências, para os cegos, para os surdos (por que não?), para os pobres, para a corrupção e para tudo que se configura como ruim para nós etc. Essa indiferença reside na protagonista e se espalha por outras personagens o que faz ser um grande choque qualquer postura sacrificial em relação ao outro. Frases intrigantes como a de Shannon: “Se você não aceita uma coisa ela some” ou mesmo de Malorie ao dizer : “Focar nas coisas erradas me acalma” são emblemáticas quanto ao desmerecimento do outro, a sua anulação e à fuga dos nossos problemas. No mais, palmas para o departamento de marketing da Netflix em promover um filme tão simples ao status de megaprodução. Mas não são assim as coisas na Internet? Nos Estados Unidos ou um pouco abaixo da linha do Equador? Alguém que é apenas louco, ou nada, pode, contra cães e pássaros, chegar ao estrelato ou mesmo à presidência de um país. Basta que as pessoas continuem com a venda bem firme, amarrada sobre os olhos. O perigo existe, mas ignorá-lo também ajuda. A vida que é uma caixa de surpresas! Os pássaros somos nós… Vicente Jr – Dramaturgo, poeta, ficcionista e crítico é professor adjunto da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e do Colégio Ari de Sá Cavalcante.